Um homem além da ciência

Em 1939, o jornal A Noite, do Rio de Janeiro, procurou Carlos Chagas Filho, então docente da Faculdade Nacional de Medicina, para ouvi-lo sobre um professor que dizia ter conseguido acender uma lâmpada na pele do peixe amazônico poraquê, conhecido como peixe-elétrico.

Sua avaliação: “Pode ser que isso tenha acontecido, mas não existe, no caso, nenhum interesse científico; como atração, como curiosidade circense, sim, pode ser divulgado”.

Na época, Chagas Filho já desenvolvia os estudos que impulsionaram diversas linhas de investigação na área de bioeletrogênese. Poucos anos depois, o cientista apresentava ao governo federal a proposta de criação de unidades autônomas de ensino e pesquisa para as ciências básicas.

Daí surgiu, em 1946, o Instituto de Biofísica da Universidade do Brasil (atual Universidade Federal do Rio de Janeiro), que desde 1985 leva o nome de Chagas Filho. Justa homenagem a um dos maiores cientistas do país, pioneiro no incentivo à prática experimental no ensino superior.

Capa do livro 'Carlos Chagas Filho – Cientista brasileiro, profissão esperança'Muito de sua vida e obra está registrado no livro bilíngue Carlos Chagas Filho – Cientista brasileiro, profissão esperança, publicado – em português e inglês – pela editora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em 2010, quando se comemorou o centenário de seu nascimento.

Em mais de 270 páginas, as pesquisadoras Nara Azevedo e Ana Luce Girão Soares de Lima, da Casa de Oswaldo Cruz (COC)/Fiocruz, reuniram um rico acervo de imagens e documentos que retratam a vida pessoal e refazem a trajetória científica de Carlos Chagas Filho. Um homem que, para além dos feitos do pai, Carlos Chagas, se notabilizou na ciência nacional.

Mudança de rota

Nascido no Rio de Janeiro do início do século 20, Chagas Filho veio ao mundo um ano após seu pai descobrir, no sertão de Minas Gerais, a tripanossomíase americana, mais tarde conhecida como doença de Chagas. Desde cedo, conviveu com a notoriedade do patriarca.

Carlos Chagas e filhos
Carlos Chagas com os filhos Evandro (à esq.) e Chagas Filho no Instituto Oswaldo Cruz, em 1918. (foto: Acervo COC)

“Nós tínhamos por nosso pai uma extraordinária amizade e admiração, pois víamos nele a imagem do que desejávamos ser”, disse em certa ocasião.

Sem surpresa, Chagas Filho ingressou, em 1926, na Faculdade de Medicina. Dois anos depois, iniciou sua formação científica no Instituto Oswaldo Cruz, de onde seu pai era diretor. A carreira que parecia naturalmente encaminhar-se para o estudo das doenças tropicais tomou novo rumo.

Motivado por uma palestra de Emmanuel Fauré-Frémiet, do Collège de France, em 1930, e sob influência de nomes como José da Costa Cruz, Miguel Osório de Almeida e José Carneiro Felipe, Chagas Filho decidiu estudar os processos físico-químicos implicados nos fenômenos biológicos. O pai não se opôs à decisão, mas insistiu em sua ida ao sertão mineiro, para conhecer as enfermidades tropicais.

“Tínhamos por nosso pai uma extraordinária amizade e admiração, pois víamos nele a imagem do que desejávamos ser”

De volta ao Rio, porém, seu desejo era “ingressar, o mais rápido possível, no estudo das ciências básicas”, embora reconhecesse o valor da experiência: “Considero essa a época mais importante da minha vida, porque eu me humanizei completamente. Fiquei ligado ao povo e à terra brasileira”.

Ensino e pesquisa

Em 1935, Chagas Filho prestou concurso para livre-docente em física biológica. Mas, com a morte do catedrático da disciplina, assumiu como interino e, após concurso, tomou posse como professor catedrático da Faculdade de Medicina.

Carlos Chagas Filho na Faculdade de Medicina
Chagas Filho ministrando aula sobre radioatividade na Faculdade de Medicina, no Rio de Janeiro. O cientista foi um dos defensores e responsáveis pela implantação da pesquisa científica nas universidades brasileiras. (foto: Acervo COC)

A nova função apresentava ao cientista o desafio de implantar a pesquisa científica na universidade brasileira. Foi então buscar, na Europa, um modelo institucional, tendo passado por Paris (onde iniciou os estudos com bioeletrogênese animal) e Londres.

Para que fosse possível desenvolver atividades de prática experimental, Chagas Filho criou cursos e implantou laboratórios.

A associação entre ensino e pesquisa era uma questão importante para o cientista: “… meu pai me dizia que, embora não fosse necessário o professor ser um pesquisador, sua obra seria muito mais importante se ele fosse um pesquisador. Eu fui além dele, porque sempre sustentei que não pode haver ensino sem pesquisa. A universidade só pode ensinar e prestar serviço de qualquer natureza se houver pesquisa”.

Atuação internacional

Chagas Filho teve papel importante no que se refere às grandes questões internacionais. Foi, entre outros cargos, secretário-geral da I Conferência das Nações Unidas para Aplicação da Ciência e Tecnologia ao Desenvolvimento e embaixador do Brasil na Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura.

Carlos Chagas Filho com o papa
Chagas Filho ao lado do papa Paulo VI. (foto: Acervo COC)

Em 1972, assumiu a presidência da Academia Pontifícia de Ciências do Vaticano. Lá, coordenou estudos sobre as consequências de um conflito nuclear para o futuro da humanidade e foi responsável pela revisão do processo de Galileu Galilei.

“Abri muito as janelas da Igreja para a ciência e as da ciência para a Igreja”, disse em entrevista ao jornal O Globo, em 1993.

Membro da Academia Brasileira de Letras, o cientista transitou também em ambientes artísticos e intelectuais. Foi amigo de escritos, pintores, músicos e poetas.

“A ciência, no meu entender, é parte integrante da cultura do país”, afirmava aquele que via seu ofício como meio de promover o desenvolvimento e o bem-estar social.

Carlos Chagas Filho
Cientista brasileiro, profissão esperança

Nara Azevedo e Ana Luce Girão S. de Lima
Rio de Janeiro, 2010, Editora Fiocruz
296 páginas – R$ 70
Tel.: (21) 3882-9039

Daniela Oliveira
Especial para a CH On-line/ RJ