O dilema do ovo e da galinha, versão cerebral

Responda rápido: suas pernas são mais fortes porque você corre mais ou você corre mais porque suas pernas são mais fortes? Você gosta de matemática porque faz contas com facilidade ou faz contas com facilidade porque gosta de matemática? Tostines é mais fresquinho porque vende mais ou vende mais porque é mais fresquinho?

Perguntas como essas, que tentam diferenciar causa e efeito, são grandes pedras no sapato da neurociência. O problema existe desde que se começou a acreditar que o cérebro é o responsável por nossas ações, mas se agravou quando, nos últimos anos, ficou claro que importantes mudanças no cérebro podem acontecer ao longo da vida — e aparentemente são associadas à experiência.

Correlações são fáceis de se encontrar. Cegos que lêem braile têm a representação da ponta dos dedos aumentada no cérebro; taxistas londrinos, obrigados a saber de cor todas as ruas da cidade, têm aumentada a porção do hipocampo que cuida da navegação espacial; violinistas têm mais córtex representando os dedos da mão esquerda, que deslizam sobre as cordas com precisão milimétrica; músicos em geral possuem uma região auditiva cortical mais extensa; mulheres com histórico de depressão crônica têm o hipocampo menor que as outras.

O difícil é dizer quem veio primeiro. A saída geralmente é procurar uma relação entre o grau da mudança no cérebro e o tempo de prática, ou de exposição a uma circunstância. Se a diferença de tamanho de uma região cerebral é tanto mais acentuada quanto maior for a duração da condição, costuma-se aceitar sem maiores remorsos que a mudança de tamanho deve ser conseqüência, e não causa. De fato, quanto maior o tempo de experiência como taxista, maior a tal região do hipocampo; quanto mais longo o estado de depressão crônica, menor o hipocampo das mulheres. Junte-se a isso a descoberta recente de que continuam nascendo neurônios novos no hipocampo ao longo da vida toda e a hipótese de remodelagem do hipocampo ao sabor dos acontecimentos parece perfeitamente plausível.

Pelo mesmo raciocínio, parecia bem resolvida a questão do distúrbio de estresse pós-traumático (PTSD, do inglês post-traumatic stress disorder ) e a redução do hipocampo. O distúrbio, que surge após traumas intensos como combate em guerra, maus-tratos severos e prolongados na infância e desastres causados por terroristas, é caracterizado por pesadelos, flashbacks, instabilidade emocional, perda de prazer, dificuldades de memória e concentração e uma tendência anormal a se assustar com qualquer coisa.

É sabido que o estresse pode danificar diretamente o hipocampo. Níveis elevados de hormônios do estresse, como o glicocorticóide, causam atrofia e até morte dos neurônios do hipocampo. Nada mais compreensível, portanto, do que encontrar num exame de ressonância magnética o hipocampo reduzido em veteranos da guerra do Vietnã diagnosticados com PTSD crônico. A descoberta, feita por dois grupos independentes no meio dos anos 90, incluía a constatação de que, quanto mais graves eram os sintomas de PTSD dos ex-combatentes, mais reduzido era o hipocampo. Tudo se encaixava perfeitamente na hipótese de atrofia causada pelo estresse — embora alguns pesquisadores sugerissem aqui e ali que talvez o hipocampo desses combatentes já fosse menor pra começo de conversa.

E eis que surge uma bomba: segundo estudo a ser publicado na revista Nature Neuroscience de novembro, quanto mais severos os sintomas de PTSD nos veteranos de guerra, menor o volume do hipocampo dos seus irmãos gêmeos que ficaram em casa!

A equipe de Mark Gilbertson, do Centro Médico de Administração de Veteranos de Manchester (EUA), investigou 40 pares de gêmeos idênticos, dos quais apenas um dos irmãos havia combatido no Vietnã e voltado com PTSD, crônico ou não. Os irmãos que ficaram em casa, é claro, nunca apresentaram sintomas do distúrbio — e no entanto o volume do seu hipocampo predizia tão bem, ou até melhor, a gravidade do PTSD de seus irmãos quanto o hipocampo dos próprios ex-combatentes!

O volume reduzido do hipocampo, aliás, não tem nenhuma relação com a gravidade do trauma de guerra a que haviam sido expostos os ex-combatentes (o que pode ser avaliado graças aos registros minuciosos que os militares gostam de manter sobre a vida de seus soldados). Por outro lado, aqueles que desenvolveram PTSD haviam participado de combates duas vezes mais duros do que os que saíram sem seqüelas.

Dado que o volume do hipocampo é praticamente idêntico nos irmãos gêmeos, a explicação mais simples para a estória toda é que um hipocampo reduzido nesses casos não é resultado nem do trauma de guerra nem do PTSD, e sim uma condição inicial de vulnerabilidade, que predispõe o indivíduo a desenvolver PTSD após um trauma. O interessante desse cenário é que ele de quebra explicaria por que, dos vários indivíduos expostos a um mesmo trauma, somente alguns desenvolvem PTSD.

No final das contas, a relação entre estresse e hipocampo é uma via de mão dupla. Os hormônios do estresse crônico são tóxicos para o hipocampo, é verdade; mas, no caso do PTSD, parece que mais importante é a resposta hormonal e comportamental exagerada ao estresse que um hipocampo reduzido permite, como já foi demonstrado em vários animais.

Quer dizer: o ovo (o estresse) pode tanto vir antes da galinha (o hipocampo reduzido), quanto a galinha vir antes do ovo. Sinal de que já é tempo de parar com essas besteiras retóricas de ovo e galinha e aceitar que natureza e ambiente, cérebro e sociedade, ao menos às vezes, são indissociáveis. Afinal de contas, a questão é descabida: ovo e galinha são o mesmo bicho…

Fonte: Gilbertson MW, Shenton ME, Ciszewski A, Kasai K, Lasko NB, Orr SP, Pitman RK. Smaller hippocampal volume predicts pathologic vulnerability to psychological trauma. Nature Neuroscience 5, novembro de 2002.

Sapolsky RM. Chickens, eggs and hippocampal atrophy. Nature Neuroscience 5, novembro de 2002.

Suzana Herculano-Houzel
O Cérebro Nosso de Cada Dia