Quem aboliu a escravidão?

   

Outro dia, lembrei-me de uma aula de história que tive na escola sobre a abolição da escravidão no Brasil. O professor perguntou para a turma quem tinham sido os principais beneficiários do fim do regime de trabalho escravo no país. 
Ao ouvir de um aluno a resposta algo espantada (não seria óbvio?) “os escravos”, o professor não teve dúvidas: sapecou um “errado” em alto e bom som e seguiu discorrendo sobre como os verdadeiros beneficiários do ato foram os republicanos, que a partir de então angariaram simpatia entre os cafeicultores do Vale do Paraíba para derrubar o Império em 1889.

Naquela época, idos dos anos 1980, não havia nas escolas, salvo raras exceções, professor que ensinasse que a abolição teve como efeito primeiro libertar aqueles que em 1888 ainda estavam cativos.

E isso independentemente das relações políticas que tenham existido – e das que possam ser feitas em sala de aula – entre a abolição da escravidão e a proclamação da República. Professores que defendessem que a luta pela liberdade pudesse ser feita pelos próprios escravos, então, nem pensar.

Para além do chavão à época comum dos livros didáticos (“os escravos não podiam ter se beneficiado da abolição da escravidão porque, no fundo, continuavam cativos da pobreza“), se dizia que eles não poderiam mesmo ter tido papel ativo. A justificativa era simples: não sendo sujeitos históricos, os escravos não seriam capazes de ser protagonistas de seus próprios destinos.

A lembrança da aula me veio à mente ao assistir à conferência de Robin Blackburn, historiador da Universidade de Essex e da New School for Social Research de Nova York, na abertura do seminário internacional O século 19 e as novas fronteiras da escravidão e da liberdade, ocorrido mês passado na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) – leia mais sobre o evento.

Blackburn iniciou sua fala jogando luz sobre a relação entre a resistência escrava e a abolição da escravidão nas Américas. Era uma maneira de formular novamente, ainda que em outros termos, a questão que, 20 anos atrás, meu professor sugeriu a seus alunos na escola.

Respostas aparecem anos depois
Só que, naquela época, ainda estava longe de chegar aos bancos escolares os resultados das pesquisas acadêmicas que então mudaram os estudos sobre escravidão no Brasil. De meados da década de 1980 até o inicio dos anos 1990, jovens autores como Maria Helena Machado, Hebe Maria Mattos e Sidney Chalhoub não apenas demonstraram o papel ativo dos escravos e seus descendentes na gestão de suas próprias vidas, como também argumentaram que as diferentes formas de resistência à escravidão contribuíram sobremaneira para a extinção do regime de trabalho escravo no país.

From rebellion to revolution, livro de Eugene Genovese, põe em debate os significados e as intenções das várias formas de resistência escrava (reprodução).

Vinte anos depois, a resposta à pergunta de Blackburn pareceria óbvia. Hoje em dia, não há quem endosse a antiga afirmação de que os escravos seriam coisas, objetos sem qualquer ação social própria.

Nenhum professor que se preze se aventura a dizer que os escravos não tenham tido papel significativo na construção da história deste país. E em nenhum livro didático se lê que o fim da escravidão resultou da ação exclusiva de grandes nomes como Wilberforce na Inglaterra ou a princesa Isabel no Brasil.

E, no entanto, a pergunta não é obvia. Como argumentou Blackburn, desde o fim dos anos 1970, quando o norte-americano Eugene Genovese publicou From rebellion to revolution (‘Da rebelião à revolução’), se discutem os significados e as intenções das várias formas de resistência escrava, das pequenas ações cotidianas às rebeliões.

As revoltas escravas teriam como objetivo a destruição do sistema escravista? Os escravos e seus descendentes livres teriam papel importante no movimento abolicionista? Teriam sido eles fundamentais para a abolição final da escravidão ou meros coadjuvantes em um processo liderado por brancos?

A discussão reacendeu com a divulgação das ideias do historiador português João Pedro Marques, que lançará no ano que vem o livro Who abolished slavery? (‘Quem aboliu a escravidão’, Berghahn Books). Ele argumenta que, nos últimos trinta anos, teria havido um exagero no papel conferido aos escravos na análise dos processos que, em diferentes países, levaram ao fim da escravidão.

Segundo o historiador, a emancipação não teria sido, na maioria dos casos, um processo dominado pelos escravos ou pelos ativistas abolicionistas negros. Para ele, a pergunta “quem aboliu a escravidão?”, se feita na escola, não poderia ter como resposta “os escravos”.

Pergunta mais complexa com o passar do tempo?
Para me intrometer no debate, arrisco dizer que a questão talvez não seja exatamente a de tentar explicar a abolição da escravidão pelo maior ou menor grau de participação dos escravos no processo.

Dois escravos posam com a sua senhora: foto sugere subserviência de um e postura altiva de outro, de modo diferente do que era ensinado nas escolas (reprodução / Wikimedia Commons).

Seria impossível tentar explicar um episódio complexo e continental como esse sem levar em conta fatores como conjuntura internacional, movimentos abolicionistas, opinião pública, economia mundial e, claro, resistência escrava.

Mas impossível também é desconsiderar que todos esses fatores acima elencados, dentre eles as ações de escravos e de seus proprietários, assim como as de negros livres, foram ganhando diferentes significados ao longo do tempo e em contextos espaciais diferentes.

Esta pode ser uma chave interessante para aprofundarmos a pergunta inicial de Blackburn. A análise da correlação entre as ações dos escravos e os processos de abolição da escravidão nos diferentes cenários nacionais das Américas é, no fundo, uma reflexão sobre o lugar das ações humanas nas grandes rupturas de cada tempo.

E é também uma reflexão sobre os papéis diferenciados que os grupos sociais têm na definição das questões econômicas e políticas que, a cada época, marcam as vidas das pessoas. Isso só torna o problema mais difícil. Refletir sobre os significados das ações humanas no passado implica também pensar sobre os efeitos que aquilo que fazemos ou deixamos de fazer tem nas grandes transformações do nosso tempo.

A esta altura, está bem mais complicado responder a pergunta do meu professor agora do que no contexto em que foi feita. Quem aboliu a escravidão? Quem se beneficiou com ela? A resposta depende, no fundo, das nossas próprias concepções sobre os limites e o alcance da agência humana. Mas não será esta mesma a função das perguntas – tornarem-se mais complexas com o passar do tempo?


Keila Grinberg
Departamento de História
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
11/09/2009