Um tiro pela culatra: assim pode ser considerada a derrubada da Amazônia para o cultivo de soja voltado para a produção de biodiesel. A quantidade de gás carbônico emitida pela conversão da floresta tropical em terras agricultáveis pode levar até 320 anos para ser compensada pelos benefícios ambientais do uso desse biocombustível. O cálculo, divulgado esta semana na revista Science, é um balde de água fria para o Brasil, que se orgulha da sua posição de destaque no mercado mundial de biocombustíveis.
A estimativa foi feita pela equipe de Joseph Fargione, da ONG norte-americana The Nature Conservancy [Conservação da Natureza]. Os cientistas calcularam a ‘dívida de carbono’ provocada pela conversão de ecossistemas naturais em áreas para cultivo das principais lavouras usadas na produção de biocombustíveis no mundo. A conclusão é clara: a derrubar trechos de vegetação nativa para produzir etanol e biodiesel, mais vale continuar usando combustíveis fósseis.
O cálculo foi feito poucos dias depois da divulgação do aumento dos índices de desmatamento na Amazônia, após três anos sucessivos de redução. Estimativas do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) apontam que foram derrubados cerca de 7 mil km 2 de floresta entre agosto e dezembro de 2007. A inversão dessa tendência tem sido atribuída principalmente à derrubada da mata para a criação de áreas para lavouras de soja e para pastagens.
Desde o dia 1º de janeiro, a mistura de 2% de biodiesel ao diesel convencional é obrigatória em todo o país – a proporção deve aumentar nos próximos anos. Embora parte do biodiesel usado para essa mistura seja produzida a partir de mamona e outras espécies cultivadas em esquema de agricultura familiar, a principal matéria-prima desse biocombustível é a soja cultivada em regime de monocultura em grandes propriedades.
Dívida de carbono
Os benefícios ambientais do uso de biocombustíveis costumam ser calculados a partir do CO 2 absorvido pela lavoura usada como matéria-prima – esse carbono seqüestrado da atmosfera compensaria aquele emitido pela queima do combustível. No entanto, esse cálculo não leva em conta a vegetação nativa que ocupava aquela área antes que ela fosse convertida em terras agricultáveis. Esses ecossistemas armazenavam toneladas de carbono, lançadas na atmosfera com a sua derrubada.
Queima de florestas tropicais de turfa na Indonésia para o plantio de dendê, voltado para a produção de biodiesel. O prazo para a ‘quitação’ da ‘dívida de carbono’ provocada pela conversão desse ecossistema é de 420 anos (foto: Wetlands International).
“A conversão de hábitats nativos em áreas de cultivo libera CO 2 devido à queima ou à decomposição microbiana do carbono orgânico armazenado na biomassa vegetal e nos solos”, explica a equipe de Fargione no artigo da Science. “Após uma liberação rápida devido ao fogo usado para limpar a terra ou pela decomposição das folhas e raízes finas, há um período prolongado de emissão de gases do efeito-estufa à medida que as raízes grossas e os galhos se decompõem e que os produtos da madeira se decompõem ou são queimados.”
O time de Fargione calculou a ‘dívida ambiental’ provocada pela conversão de seis ecossistemas em lavouras, durante os 50 anos seguintes à derrubada dessa vegetação nativa. O biodiesel feito com a soja cultivada na Amazônia só perde para o biodiesel de dendê plantado em áreas de florestas tropicais de turfa na Indonésia e na Malásia, que pode gerar uma ‘dívida de carbono’ que levaria até 420 anos para ser ‘quitada’.
A ‘dívida de carbono’ associada à conversão do cerrado em lavouras de soja, para a produção do biodiesel, e de cana-de-açúcar, para a produção do etanol, também foi calculada. O ‘prazo de quitação’ da dívida é, respectivamente, de 37 e 17 anos – ou seja, este é o tempo necessário para que o uso desses biocombustíveis comece de fato a ser vantajoso para o meio ambiente. Os dois casos foram os menos preocupantes dos seis analisados pelos pesquisadores.
Diante do alarme, os autores do estudo são taxativos. “Ao converter a terra para a produção de biocombustíveis, estamos talvez promovendo não intencionalmente alternativas piores do que os combustíveis fósseis que elas deveriam substituir”, afirmou à imprensa Jimmie Powell, pesquisador da Nature Conservancy. Os autores do estudo destacam que a produção de biocombustíveis deve valorizar o uso de rejeitos da biomassa como matéria-prima – como o bagaço da cana, já usado em escala experimental para a produção de etanol no Brasil – ou o cultivo em terras degradadas ou abandonadas.
Bernardo Esteves
Ciência Hoje On-line
07/02/2008