A medida universal (por muito pouco)

Além dos conflitos que marcaram a Revolução Francesa (1789-1799), nessa mesma época o país de Napoleão foi ainda palco de uma das mais extraordinárias expedições científicas já realizadas — aquela que criou o sistema métrico. Mas até que fossem consagradas internacionalmente, as novas unidades de medida superaram muitos percalços. Os principais desafios dessa empreitada e a descoberta de um erro acobertado durante a expedição são tema do livro A medida de todas as coisas , do norte-americano Ken Alder, historiador e professor da Universidade Northwestern (EUA).

Para investigar a origem do metro, Alder teve acesso a cartas e documentos elaborados por Jean-Baptiste Delambre (1749-1822) e Pierre Méchain (1744-1804), dois astrônomos que percorreram a porção do meridiano que corta Paris (de Dunquerque a Barcelona) entre 1792 e 1799. Em direções opostas — Delambre para o norte e Méchain rumo ao sul em relação a capital francesa –, eles procuravam a medida exata de um décimo de milionésimo da distância entre o pólo Norte e a linha do Equador. Assim nascia o metro.

Prisões, acidentes, risco de confisco de equipamentos e ameaças de morte dificultaram a realização das medições, feitas a partir do método de triangulação . Mesmo assim, os astrônomos aferiram dados em diversas estações ao longo do meridiano e, ao fim da expedição, determinaram a latitude dos pontos mais extremos das rotas por meio da observação de astros.

No entanto, a partir da chegada de Méchain a Barcelona (o ponto mais ao sul da rota), o astrônomo deixou de enviar alguns dados ao parceiro — até então um hábito entre eles. Em pânico, Méchain percebeu que tinha cometido um erro durante as correções de refração na cidade catalã: uma diferença na latitude de 3,4 segundos — inadmissível para a comissão que ratificaria os cálculos em Paris.

Alder encontrou no Observatório de Paris as cartas dos astrônomos que revelavam o erro encoberto por Méchain. Em A medida de todas as coisas o historiador enriqueceu seu longo e detalhado texto com trechos de algumas delas, que revelam a falha: uma diferença de apenas 0,2 milímetro no metro conhecido, ou o equivalente à espessura de duas páginas de um livro.

Convencido de que não poderia admitir o erro, Méchain tentou falsificar os próprios relatórios. Seus cálculos foram aprovados e a nova unidade oficializada na França. Apesar disso, a rejeição foi muito grande. Como um novo calendário e um novo padrão para as horas, o metro foi mais uma tentativa de se criar medidas universais em uma época turbulenta. Por isso, com o fim da revolução, os antigos sistemas voltaram a vigorar.

Em 1804, a perturbação de Méchain o levou às Ilhas Baleares, no Mediterrâneo, a fim de instituir outra referência mais ao sul do meridiano que substituísse o marco de Barcelona e, assim, desfazer o erro. Mas antes de concluir a expedição, morreu de malária. Delambre, então, reuniu todos os dados de Méchain, reconstituiu os diários do parceiro e refinou os métodos geodésicos para publicar As bases do sistema métrico decimal , em 1810.

Mais que uma agradável história sobre a origem conturbada do sistema métrico, A medida de todas as coisas mostra como dois homens com personalidades tão diferentes conseguiram realizar suas minuciosas medições e ser responsáveis pelo sistema hoje adotado por cerca de 95% dos países do mundo — a exceção maior fica por conta dos EUA, com suas milhas, jardas e polegadas.

 

A medida de todas as coisas – a odisséia de sete
anos e o erro encoberto que transformaram o mundo

Ken Alder (trad.: Adalgisa Campos da Silva)
Rio de Janeiro, 2003, Objetiva
520 páginas – R$ 69,90

Andreia Fanzeres
Ciência Hoje On-line
02/02/04