A mitologia de um medo

O medo de aranhas é desproporcional ao risco que elas oferecem. É o que garante Geoffrey Isbister, da Universidade de Newcastle, na Austrália. Em artigo publicado em 7 de agosto na revista The Lancet , ele revê a mitologia passada e presente em torno desses invertebrados.

Exemplar da aranha Loxosceles intermedia
(aranha-marrom). Foto: UFPR

Segundo o autor, poucas espécies podem nos causar algum mal e dificilmente sua mordida mata ou provoca morbidez grave. Mas essa não é a impressão geral, como mostra uma pesquisa feita em 1994 no Reino Unido. Entre 261 adultos consultados, 18% dos homens e 32% das mulheres confessaram que aranhas os deixam ansiosos, nervosos ou muito assustados.

Por que então o medo de aranhas se perpetua? O artigo apresenta três modelos para explicar o fenômeno. O primeiro, de inspiração darwinista, defende que se trata de um medo inato de possíveis ameaças à perpetuação da espécie. Isbister ressalta, no entanto, que a aracnofobia é característica sobretudo dos povos ocidentais — “muitas culturas reverenciam aranhas ou vêem-nas como símbolos de boa sorte”, afirma.

O segundo modelo atribui o temor ao condicionamento provocado por experiências negativas com esses animais. Não há, no entanto, evidências que comprovem essa hipótese. Já a explicação defendida pelo autor associa o medo à repulsa que as aranhas provocam, disseminada pelo convívio social.

Isbister aponta fatores históricos que alimentaram o medo de aranhas — como a história do tarantismo, doença surgida na cidade de Taranto (Itália) que teria acometido a Europa entre os séculos 15 e 17. Aranhas da espécie Lycosa tarantula foram acusadas de causar esse mal cujos sintomas eram suor, tremor, insônia, dor, rigidez corporal e fraqueza.

Curiosamente, acreditava-se que, para curar-se, o doente deveria dançar freneticamente durante quatro dias. Enquanto em alguns lugares a doença acabou associada à loucura por conta disso, em outros se tornou um pretexto para orgias ou festivais de dança, o que deu origem à famosa tarantela.

O passar dos tempos não extinguiu as crenças populares em torno das aranhas. “O mito atual afirma que muitas espécies são responsáveis por úlceras necróticas”, afirma Isbister. “O diagnóstico das mordidas de aranha ainda se baseia sobretudo em suspeitas e no medo desses animais.” Segundo ele, picadas de aranha podem causar o aracnidismo necrótico — patologia mal definida e caracterizada por necroses na pele.

Espécies do gênero Loxosceles seriam as causadoras das principais ocorrências desse mal. Esse é o gênero das aranhas-marrons ( L. intermedia ) que proliferaram nos últimos anos em Curitiba e foram responsáveis por mais de 3 mil picadas registradas. Isbister relata casos de necrose ocorridos em São Paulo nos anos 20, aparentemente causados por aranha-de-grama ( Lycosa raptoria ou L. erythrognatha ), comuns em locais desmatados e áreas urbanas. No entanto, um estudo de 1990 mostrou que, entre 515 casos de mordidas de aranhas dessa espécie, nenhum resultou em necrose.

O autor defende que se investigue melhor a relação entre as mordidas de aranha e os casos de necrose antes de conclusões precipitadas. “Um amplo estudo australiano mostrou que é altamente improvável que úlceras necróticas resultem de mordidas de aranha”, alega. “Outras causas, como infecção bacteriana, que produzem necrose parecida com a de Loxosceles , não têm sido suficientemente investigadas pelos médicos, que preferem atribuir a necrose à picada de aranha”, corrobora o biólogo Rogério Bertani, do Instituto Butantan.

Aline Gatto Boueri
Ciência Hoje On-line
19/08/04