À procura do lítio perdido

Um artigo da Nature desta semana pode trazer uma solução para a ‘crise do lítio’ – enigma que há anos intriga os cientistas. A quantidade de lítio medida em estrelas mais velhas era de duas a três vezes menor do que a abundância desse elemento químico no universo prevista por modelos teóricos derivados do Big Bang . A discrepância pode ser atribuída a processos estelares ainda pouco conhecidos, que não haviam sido considerados nos cálculos anteriores, segundo a equipe do astrônomo Andreas Korn, da Universidade de Uppsala, na Suécia.

A ‘crise do lítio’ foi solucionada a partir de observações do aglomerado globular NGC 6397, feitas através do Very Large Telescope, do Observatório Europeu do Sul (ESO), no deserto do Atacama (Chile). Situado na constelação de Ara, o NGC 6397 reúne as estrelas mais velhas da Via Láctea – são cerca de 400 mil. Um aglomerado globular é um conjunto de estrelas dispostas de forma esférica que orbita uma galáxia como se fosse um satélite (foto: ESO).

A quantidade de elementos químicos sintetizados nos minutos após o Big Bang pode ser inferida a partir da teoria da nucleossíntese primordial – processo de formação de hidrogênio, hélio e lítio a partir da combinação de prótons, elétrons e nêutrons livres (os demais elementos se formaram posteriormente, em outros processos). Esse modelo é sustentado principalmente por observações da radiação cósmica de fundo, único vestígio dos primeiros anos do universo. As previsões feitas a partir dele são compatíveis com a quantidade de hidrogênio presente no universo, mas indicavam que grande parte do lítio primordial havia misteriosamente desaparecido.

Para solucionar o enigma, os pesquisadores observaram dezoito estrelas de diferentes tipos e em distintos estágios de evolução do aglomerado globular NGC 6397, situado a 7.200 anos-luz da Terra. “Não é possível utilizar qualquer estrela para comparar a quantidade de lítio prevista pela teoria com a observação”, explica o astrofísico Walter Maciel, da Universidade de São Paulo (USP). “É preciso analisar as mais velhas em que, em princípio, deveria haver uma quantidade de lítio mais próxima do valor primordial.” Isso acontece porque essas estrelas se formaram durante um período mais próximo ao Big Bang que as estrelas mais jovens.

Difusão e mistura turbulenta
Os cientistas constataram que as estrelas mais velhas observadas já não têm mais boa parte do lítio primordial que deveriam ter. Segundo eles, a principal causa desse desaparecimento seria um processo que ocorre no interior da estrela conhecido como difusão. Ele é caracterizado pelo ‘afundamento’ rumo ao interior da estrela dos elementos químicos mais pesados que o hidrogênio, devido à força da gravidade. Como o lítio é sete vezes mais pesado que o hidrogênio, acabou armazenado nas regiões mais internas do corpo celeste, onde é impossível visualizá-lo. A difusão ocorre ao longo da evolução das estrelas, por isso seus efeitos são mais visíveis nas mais velhas.

Segundo os autores, um outro processo que não era considerado nas medições anteriores também pode estar por trás da ‘crise do lítio’ – a chamada mistura turbulenta. Esse fenômeno consiste na formação de zonas de convecção ligadas ao movimento de rotação da estrela. Uma zona de convecção é o movimento em que os elementos mais pesados afundam e os mais leves emergem e vice-versa, formando um fluxo contínuo. A partir de um determinado estágio de evolução estelar, o segundo processo começa a reduzir os efeitos do primeiro, ou seja, uma quantidade menor de elementos mais pesados irá para as camadas mais profundas das estrelas.

“A convecção pode trazer os elementos mais pesados para a superfície”, explica Andreas Korn, em entrevista à CH On-line . “Mas o núcleo do lítio é muito frágil, e não sobrevive ao trajeto através da estrela: ele se quebra quando as temperaturas excedem dois milhões de graus kelvin.” Por isso, o lítio não é restaurado na superfície, ao contrário de outros elementos mais pesados como o ferro e o cálcio, numa quantidade condizente com a prevista na teoria da difusão. “Podemos inferir, a partir disso, que deveria haver cerca de duas vezes mais lítio nas estrelas do que o observado atualmente”, prossegue Korn. “E esta abundância está bem próxima do que previmos que havia sido produzido no Big Bang ”.

Apesar da grande diminuição do erro, permanece uma margem de erro de 20% entre as previsões teóricas e as observações empíricas. “Podemos ter certeza de que os processos estelares têm um papel importante na observação da quantidade de lítio, mas deve haver outros fatores além deles”, afirma Korn. “É preciso considerar outros processos ainda pouco conhecidos da hidrodinâmica estelar para se chegar a resultados mais exatos”.

 


Franciane Lovati

Ciência Hoje On-line
09/08/2006