A rosa de Avicena

“Nenhuma descrição do universo pode ser completa se não for poética.” A frase encerrou a palestra do físico Luiz Alberto Oliveira, do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), que compôs a programação de um encontro nada ortodoxo. Na semana passada (29 e 30/8), cientistas das mais variadas áreas – cosmologia, matemática, antropologia, história, entre outras – se reuniram no auditório do CBPF, no evento ‘Mitos cosmogônicos’, para filosofar sobre um tema instigante: a relação entre ciência e mitologia.

Apesar de inusitada, a ideia não é nova. “Em 1957, um grupo de pensadores se reuniu em Paris para dialogar sobre a mesma questão”, contou o físico Mario Novello, também do CBPF. “A ideia era trocar experiências e comparar conhecimentos no exame dos diversos projetos religiosos de povos da Antiguidade, referentes ao que se costumou chamar de criação do mundo.” E, segundo Novello, talvez seja hora de retomar esse interessante diálogo.

Para Heidegger, a ciência não pode se autolegitimar; e por isso ela precisa de uma ‘metaciência’, isto é, um saber mais amplo capaz de legitimá-la. Esse saber é a filosofia

Para Oliveira, o conjunto dos saberes contemporâneos é marcado por um abismo entre as ciências da natureza e as chamadas ciências humanas. Tamanho é o embate. O filósofo alemão Martin Heidegger (1989-1976) chegou a dizer que “a ciência é incapaz de pensar”. Ela seria mera aplicação de um método. “Para Heidegger, a ciência não pode se autolegitimar; e por isso ela precisa de uma ‘metaciência’, isto é, um saber mais amplo capaz de legitimá-la.” Esse saber é a filosofia.

Ponto para Heidegger. Mas o duelo não terminaria tão cedo – pois décadas adiante o cosmólogo britânico Stephen Hawking retrucaria dizendo que “a filosofia está morta”. E seu argumento é contundente: os filósofos tornaram-se incapazes de acompanhar os avanços profundos e grandiosos pelos quais a ciência contemporânea passou. Ponto para Hawking. “O que os filósofos praticam, segundo ele, é inteiramente desimportante e sem nenhum significado para o cientista”, disse Oliveira. “É exatamente por isso que um encontro como esse é tão importante: ele é a tentativa de iniciar uma ponte entre esses dois saberes.”

Cartaz evento ‘Mitos cosmogônicos’Conflitos epistemológicos à parte, perguntas elementares permanecem irrespondíveis. Houve um momento singular de criação do universo? O que havia antes do nada? O nada, aliás, pode mesmo existir? Qual é a natureza do tempo?

No embalo dos questionamentos, Oliveira fez referência ao filósofo andaluz Ibn Sina (980-1037), conhecido no ocidente como Avicena. Ele concebeu o tempo como o desabrochar das pétalas de uma rosa. “Passado, presente e futuro estariam superpostos, simbolizando uma eternidade na qual as pétalas representariam as dimensões do tempo”, explicou o físico.

O que os filósofos praticam, segundo Stephen Hawking, é inteiramente desimportante e sem nenhum significado para o cientista

Intrigado com a questão, o filósofo Peter Pál Pelbart, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, lançou à plateia a clássica dúvida do filósofo francês Henri Bergson (1859-1941): “Por que, afinal, existe algo no lugar do nada?”.

O leitor interessado nessas reflexões encontrará bom material na revista eletrônica Cosmos e contexto, responsável pela organização do evento no CBPF. O periódico publicou, recentemente, diversos artigos – da física à mitologia – explorando os perturbadores questionamentos que há tantos séculos desafiam cientistas e pensadores das mais diversas áreas.

Henrique Kugler
Ciência Hoje/ RJ