A superfetação, tema da minha coluna de maio, é definida como a ocorrência de uma segunda concepção durante uma gravidez já estabelecida, implicando, assim, na existência de dois ou mais fetos em fases de desenvolvimento diferentes em uma mesma gestação.
A desregulação hormonal nos níveis de progesterona, alterações anatômicas (como a presença de dois úteros) e perturbações fisiológicas causadas pelo uso de técnicas de reprodução assistida são citadas como as principais causas da superfetação.
Apesar de a ocorrência da superfetação ter sido citada por Hipócrates, Heródoto, Plínio e Aristóteles e a primeira descrição científica desse processo ter ocorrido há exatos 350 anos em lebres europeias (Lepus europaeus) pelo naturalista inglês Robert Lovell (1630-1690), sua autenticidade ainda é contestada.
- A primeira descrição científica de superfetação foi feita há 350 anos em lebre europeia (na foto) pelo naturalista inglês Robert Lovell. Mas pesquisadores afirmam que a reprodução nessa espécie é muito complexa, o que pode dar margem a interpretações equivocadas. (foto: Fmickan/ CC BY-AS 3.0)
Embora já tenha sido descrita em 10 ordens de mamíferos, inclusive em seres humanos, há enorme controvérsia sobre a ocorrência de superfetação nessa classe de animais. Apenas em algumas espécies, como na vison-americano (Neovison vision) e no texugo (Meles meles), a ocorrência de superfetação é pouco questionada.
Contudo, em outros grupos animais, como peixes poecilídeos (guppies, molinésias, espadas, entre outros), há evidências convincentes de superfetação.
Parte dessa polêmica se deve a problemas na identificação de fetos fecundados em períodos diferentes e na análise desse processo após o parto ou mesmo depois da morte dos animais analisados. Além disso, a observação de fetos com idade gestacional diferenciada em uma ninhada nem sempre é prova inquestionável da superfetação.
Em alguns casos, a superfetação pode ser confundida com outro evento reprodutivo raro: a superfecundação. Adolph Kussmaul (1822-1902), um médico alemão considerado o “Hipócrates do século 19”, definiu a ocorrência de fertilizações diferentes em um mesmo ciclo menstrual como “superfecundação” e diferenciou esse fenômeno da superfetação, um evento onde há fecundações em ciclos menstruais diferentes.
Assim, uma das pistas para a ocorrência de superfetação é se encontrar em uma mesma ninhada embriões com diferenças etárias superiores a duração do ciclo menstrual das fêmeas analisadas.
Em busca de evidências
A lebre europeia é citada desde a antiguidade como exemplo de animal em que a superfetação é comum, pois nessa espécie são frequentes ninhadas com fetos em fases de desenvolvimento diferentes.
No entanto, alguns pesquisadores questionam esse achado e afirmam que a reprodução nessa espécie é muito complexa e é comum a existência de fetos que tenham os seus desenvolvimentos suspensos ou mesmo que tenham sido reabsorvidos pela fêmea.
A ocorrência de diapausa embrionária, uma estratégia utilizada por mais de 100 espécies de mamíferos de sete ordens diferentes, é um processo que também pode ser confundido com a superfetação.
Na diapausa embrionária, ocorre um atraso na implantação (e no desenvolvimento posterior) de parte dos embriões fecundados. Esses embriões são mantidos em dormência e, como resultado, em alguns casos, a duração da gestação pode ser ampliada em até um ano.
Apesar de sua ampla ocorrência em animais como cangurus, ursos, roedores, mustelídeos (como os texugos) e em pelo menos um cervídeo – a corça (Capreolus capreolus) –, não se sabe exatamente quais mecanismos moleculares e fisiológicos associam-se à diapausa embrionária.
- A diapausa embrionária – marcada pela ocorrência de um atraso na implantação (e no desenvolvimento posterior) de parte dos embriões fecundados – é comum em animais como cangurus (na foto), ursos, roedores, entre outros. Mas pouco se sabe sobre os mecanismos a ela associados. (foto: Wikimedia Commons)
Além disso, a possibilidade de retenção no útero, por longo período de tempo, de fetos mortos, sem alterações macroscópicas marcantes, também pode ocorrer. Isso já foi descrito, por exemplo, há quase um século em gatos por Albert Kuntz (1879-1957), da Universidade de Saint Louis, nos Estados Unidos.
Análises que comprovem inquestionavelmente a ocorrência de superfetação e indiquem quais são os aspectos fisiológicos relacionados a esse processo permitirão que compreendamos melhor o controle hormonal da reprodução. Além disso, o estudo da superfetação poderá aperfeiçoar a criação de animais domésticos e aprimorar o uso de técnicas de reprodução assistida atualmente bastante comuns.
Jerry Carvalho Borges
Departamento de Medicina Veterinária
Universidade Federal de Lavras
Este texto foi atualizado para incluir a seguinte alteração:
As legendas, que estavam invertidas, foram colocadas nas devidas imagens. (24/05/2011)