O projeto de ter um perfil do filósofo Benedito Nunes na revista Ciência Hoje era antigo. Tanto que quando a reunião anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência se realizou em Belém, em julho de 2007, a ideia reapareceu.
O cientista político Renato Lessa, diretor do Instituto Ciência Hoje, marcou uma entrevista com o pensador paraense. Tiveram uma longa e saborosa conversa.
Alguns hiatos, no entanto, ainda precisavam ser preenchidos e procuramos marcar uma nova entrevista, que acabou se realizando somente em novembro do ano passado, quando estive com Bené – como ele era conhecido por todos na cidade, apelido que já diz muito da sua simplicidade – em dois encontros em sua casa, no bairro do Marco, um pouco afastado do Centro de Belém.
A notícia de sua morte, ocorrida em fevereiro último, antes mesmo da publicação do perfil, foi recebida com imensa tristeza e perplexidade. A entrevista saiu, no número de abril da revista, como uma modesta homenagem à grandeza desse intelectual, que, tendo vivido a maior parte de sua vida no Pará, nunca se rendeu ao regionalismo.
Benedito Nunes construiu um caminho singular ao apoiar sua obra em um diálogo permanente entre filosofia e literatura. “Um movimento de vaivém da filosofia à poesia e da poesia à filosofia”, como escreveu num de seus ensaios.
As análises que fez sobre Clarice Lispector, Oswald de Andrade e João Cabral de Mello Neto, entre outros autores, são indispensáveis para qualquer estudioso da literatura brasileira.
Do mesmo modo, seus estudos filosóficos, que abarcam, entre tantos outros, Platão, Hegel, Merleau-Ponty e, sobretudo, Heidegger (“mas sem heideggerices”, ressalvou, referindo-se, com humor, aos imitadores do vocabulário característico do filósofo alemão) são referência no campo da filosofia.
Entre quadros e livros
Ao ouvir a fita das entrevistas, uma surpresa foram as gargalhadas que pontuaram toda a conversa. Grande causeur, as histórias engraçadas se sucediam. Sobre os amigos de juventude, sobre Foucault, sobre Sartre.
Lembrando seu primeiro professor de alemão, Oto Wirtz, contou que ele era granjeiro e, junto aos livros, trazia dentro da pasta galinhas para vender. Também contou que seu primeiro encontro com Carlos Drummond, poeta preferido, “de estimação”, se deveu à encomenda do escritor Haroldo Maranhão, que “tinha uma atividade ‘namoratória’ muito grande” e quis dar um álbum de poesia autografado à namorada.
A entrevista com Bené ocorreu em duas manhãs. Na primeira, como o ar-condicionado da biblioteca estava defeituoso, instalamo-nos na sala de vídeos, de pé direito alto, repleta de quadros nas paredes.
Entre eles, chamava a atenção – e nem poderia ser de outra maneira – uma reprodução de A origem do mundo, o conhecido quadro de Gustave Courbet, que exibe, com grande realismo, um close do sexo feminino.
Na segunda manhã, ar-condicionado reparado, foi possível ficar na biblioteca, sem dúvida seu lugar predileto na casa. Havia volumes espalhados por todos os lados, em aparente desordem (só aparente, pois Benedito sabia o lugar preciso de cada um).
Os livros pareciam reproduzir-se sem controle, ciumentos, talvez, da vegetação exuberante no jardim. Impossível não lembrar do comentário do romancista amazonense Milton Hatoum, com o qual certamente o filósofo concordava: “a natureza ri da cultura”.
Sheila Kaplan
Ciência Hoje/ RJ