“Palavras secas não vão incendiar corações”, escreveu certa vez o naturalista escocês John Muir. Provavelmente ele estava certo – e os editores da Nature Climate Change concordariam.
O periódico publicou ontem (12/02) um texto nada ortodoxo, que não fala em números, tampouco em resultados áridos de pesquisa, mas que expressa a essência de um movimento cultural que, ao longo da última década, viu no discurso das mudanças climáticas inspiração para um novo fazer artístico.
Quem assina é o britânico David Buckland – que não é cientista, mas sim cineasta.
No distante ano de 2001, ainda antes do apaixonado debate sobre aquecimento global tomar conta da esfera pública, ele já estava bem antenado na problemática. Preocupado com as previsões apocalípticas que começavam a tomar forma, fundou o Cape Farewell, movimento artístico que se propõe a dar uma resposta cultural ao possível aquecimento da Terra.
Uma pergunta instigava Buckland: como é possível, diante de tantos dados assustadores que a ciência nos traz, nossa sociedade permanecer apática? Como transcender essa letargia?
Para o artista, a mobilização não viria pela frieza dos números; mas sim pela subjetividade de uma nova percepção cultural, engajada, que fizesse a civilização se unir em torno de uma causa comum, que é a preservação do futuro. Mãos à obra.
Lirismo em tesouros de gelo
Buckland recrutou um time de romancistas, poetas, arquitetos, músicos, fotógrafos, cineastas – e até mesmo cientistas! – para uma série de nove expedições rumo a alguns pontos considerados sensíveis às alterações climáticas. Sete dessas jornadas foram pelas altas latitudes do Ártico; uma pela região amazônica nas proximidades dos Andes; outra pelo litoral escocês.
A bordo da Noorderlicht, centenária escuna norueguesa, pesquisadores coletavam dados e artistas colecionavam inspirações. “A embarcação funcionou como plataforma de pesquisa, veículo de engajamento e espaço de criação”, escreveu Buckland.
“Durante a expedição ao Ártico, comecei a perceber como tudo é conectado”, rabiscou em seu bloco de anotações o poeta britânico Nick Drake. “Aliás, o preço de minhas viagens aos shoppings, de minha TV e de meu confortável apartamento são pagos aqui, pois, ao final, somos dependentes deste vasto tesouro de gelo. O Ártico sustenta um espelho acima de todos nós, e vejo agora que vivemos como deuses com seus dias contados.”
Manifestações de lirismo não faltam nos registros de cada jornada. “A pressão de nossos números, a abundância de nossas invenções, as forças cegas de nossos desejos e necessidades gerando calor – a respiração quente de nossa civilização. Como podemos começar a impor nossos próprios limites?”, registrou o romancista também britânico Ian McEwan ao presenciar o derretimento de um glaciar.
As artes visuais também marcam presença. Vídeos, fotografias, instalações e diversas outras linguagens. Parte do material produzido já foi exposta em museus ao redor do mundo; e novas obras estão prestes a estrear nas exposições previstas para 2012 e 2013.
Exposições que já têm nome: Carbon 12, Carbon 13 e Carbon 14, referência aos isótopos do carbono, “elemento fundamental à vida”, e também a “causa-raíz do agravamento do efeito-estufa”, escreveu Buckland, a despeito das controvérsias. As estreias serão, respectivamente, em Paris, Marfa e Toronto.
O projeto também rendeu dois documentários: Art from the Arctic (2005), dirigido por David Hinton em parceria com a BBC; e Burning Ice (2010), dirigido por Peter Gilbert para o canal estadunidense Sundance Television, além de uma série de outras produções audiovisuais de menor fôlego.
“As mudanças climáticas são um desafio cultural”, escreve Buckland, citando a frase lapidar de Marhsall McLuhan segundo a qual “a nave Terra não carrega passageiros, apenas tripulação”.
Sonata do tempo
Desde o início do Cape Farewell, uma década se passou. A comemoração é o gancho da publicação do trabalho na Nature Climate Change, em 12 de fevereiro. Ironicamente, poucos dias antes, saiu na própria Nature artigo com resultados inesperados que promete ser a nova pedra no sapato dos partidários do IPCC. Segundo o estudo divulgado, o degelo na região do Himalaia, ao longo dos últimos dez anos, foi praticamente zero (aos interessados na intriga, há uma boa discussão no The Guardian).
Divergências à parte, o trabalho de Buckland sustenta seu mérito. Afinal, a essência de seu movimento transcende qualquer trama científica, política ou ideológica ao reavivar os laços históricos de dois domínios da experiência humana que, há tempos, andam se desencontrando: arte e ciência.
Se o biólogo chileno Humberto Maturana estiver certo ao afirmar que somos seres muito mais emocionais do que racionais, o projeto de Buckland está no caminho certo. Se o tempo é breve e o espaço é efêmero, talvez sua mensagem final seja eloquente ao sugerir que o ímpeto da mudança pode estar na integração plena entre o contemplar, o conhecer e o sentir.
Henrique Kluger
Ciência Hoje/ RJ