Dilemas éticos em cena

Você sai comovido, com os olhos vermelhos e a cabeça a mil. Esses são alguns dos efeitos colaterais provocados por Sangue ruim, peça que estreou no início do mês (1/4) no Museu da Vida, na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

Escrita pelo inglês Paul Sirett, da companhia Theatrescience, e dirigida por Wanda Hamilton, do museu carioca, a peça aborda, de forma impactante e provocativa, a polêmica questão dos ensaios clínicos em pesquisas sobre Aids.

O que envolve uma pesquisa com seres humanos? Até que ponto se pode ir? Essas são algumas das reflexões que a montagem propõe ao tratar de um novo medicamento contra a doença testado em mulheres africanas grávidas.

O que envolve uma pesquisa com seres humanos? Até que ponto se pode ir?

Apesar da seriedade do tema, há também uma boa dose de humor, principalmente nas primeiras cenas, quando Claire (Paula Alexander), pesquisadora inglesa de renome, e Patrice (Izak Dahora), jovem funcionário do hospital, se conhecem.

Ela, cética, séria, obsessiva e workaholic. Ele, afetivo, sedutor, curioso e ingênuo (mas nem tanto). Os dois estão no escritório de Claire. O ano é 1997. A pesquisadora examina os efeitos de um medicamento alternativo ao tradicional AZT.

Patrice se diz interessado em aprender inglês e, assim, conquista a intimidade da moça. No desenrolar da história, o jovem africano faz surgir informações bombásticas sobre seu real interesse na relação e a peça ganha força com muitas reviravoltas.   

A trilha sonora é um dos pontos altos. Pitadas de jazz e blues remetem aos anos 1930 nos Estados Unidos e ao caso Tuskegee, ocorrido no Alabama em 1932 e mencionado ao longo da peça (leia o boxe abaixo).

Bad Blood Blues, nome original da peça, já deflagra o papel central da música na história. Em sua montagem no Theatre Royal Stratford East, em Londres, o músico era mais um ator em cena, que tocava ao vivo para a plateia.

Expandindo o debate

Além de Londres, a peça também já foi montada na Índia. Foi lá, em um evento de divulgação científica, que Luisa Massarani, coordenadora do Museu da Vida, conheceu o autor da peça e começou a negociar a adaptação brasileira.

“Temos buscado estratégias diferentes para atrair o interesse do público em ciência e tecnologia. Uma delas é a procura de peças interessantes que tragam reflexões e tenham impacto sobre a sociedade”, explica Luisa.

Por trás do encontro entre Luisa e Paul e das negociações para a montagem no Museu da Vida, há uma personagem importante: a médica indiana Hemalatha Somsekhar, da Fundação de Saúde Pública da Índia e divulgadora de ciência.

Na estreia da peça, foi ela quem abriu o debate pós-apresentação. Começou com dados duros: de 15% a 30% das mulheres portadoras do HIV passam o vírus para os filhos durante a gravidez, e entre 5% e 20% dos bebês se contaminam na amamentação. 

peça Sangue ruim
Debate posterior à apresentação, com os atores Paula Alexander e Izak Dahora, a médica indiana Hemalhata Somsekhar (ao microfone) e Wanda Hamilton, diretora da peça (à direita). (foto: Vinícius Pequeno – COC/Fiocruz)

Em seguida, disparou uma série de questões éticas: será que é certo fazer um teste clínico com o uso de placebo (substância inócua), deixando um grupo de portadores do vírus letal sem acesso ao medicamento testado? E se ele for eficiente? Quantas mortes poderiam ter sido evitadas?

Mas e se, ao contrário, o teste mostrar que o tratamento é nocivo ao paciente? Como todo bom debate científico, o evento deixou mais perguntas do que respostas.

Sangue ruim
de terça a quinta, 10:30 e 13:30
Museu da Vida (Av. Brasil 4365, Manguinhos)
Tel.: 21 2590-6747
Até 30 de junho


Gabriela Reznik

Ciência Hoje On-line

Crime ético
O estudo de Tuskegee, que valeu até uma desculpa pública do ex-presidente dos Estados Unidos Bill Clinton, teve início em 1932, em Tuskegee, no Alabama, e durou 40 anos. Cientistas do Serviço Público de Saúde dos Estados Unidos utilizaram homens negros e pobres em ensaios clínicos que supostamente buscavam a cura da sífilis. A pesquisa envolveu 600 voluntários – 399 com sífilis e 201 sem a doença –, que nunca receberam tratamento adequado. Mesmo quando a penicilina foi apontada como a melhor forma de combater a sífilis em 1947, essa opção não foi oferecida aos voluntários.