Divulgação mão a mão

Cerca de 30 educadores e curiosos se reuniram em torno de uma mesa no último sábado (30/6) na Casa da Ciência (RJ) para uma oficina que fez parte das comemorações dos 30 anos do Instituto Ciência Hoje. A questão central: como ensinar ciência a surdos. Uma pergunta, no entanto, precedeu qualquer explanação. Será que a maioria da população já sabe que os surdos têm enorme dificuldade para ler e escrever em língua portuguesa?

Será que a maioria da população já sabe que os surdos têm enorme dificuldade para ler e escrever em língua portuguesa?

Vivian Rumjanek, professora do Instituto de Bioquímica Médica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IBqM/ UFRJ) e há mais de oito anos coordenadora de um projeto que oferece cursos de biociências durante as férias para alunos surdos, respondeu:

“A maioria não sabe. Eu, por exemplo, achava que os surdos apenas não escutavam. Mas pensava que eles conseguiam ler. Perguntava a mim mesma por que o aluno não podia, mesmo que não entendesse a aula, ir depois ao livro e aprender sobre aquilo que não tinha conseguido entender.”

Libras é a primeira língua

O que Rumjanek descobriu é que muito dificilmente a primeira língua de uma pessoa que nasce com deficiência auditiva não será a linguagem de sinais, no Brasil conhecida como Libras. Aprender a ler e a escrever em português para um surdo é tarefa árdua por uma série de razões. Fiquemos, pois, com uma bem simples de ser entendida e relembrada por todos aqueles que um dia aprenderam a ler: durante a alfabetização, relacionamos letras com sons, sílabas e, finalmente, palavras – sons, sílabas e palavras que o surdo nunca ouviu.

Um mundo mais imagético seria mais lógico num cenário sem áudio

Um mundo mais imagético, com sinais feitos com as mãos e com muita, muita mesmo, expressão facial para ratificar aquilo que já foi dito com gestos parece mais lógico num cenário sem áudio.

Partindo desse princípio e com a experiência de quase uma década de cursos de verão com surdos, Rumjanek e outros integrantes do IBqM toparam o desafio de angariar oito alunos do ensino médio do Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES), todos eles surdos profundos, com mais de 92% de perda auditiva, e montar a sério um curso de extensão em biociências: com um ano de duração, quatro horas por dia, presença constante e intérpretes de Libras.

Sobre os intérpretes, aliás, o professor do curso de extensão, Flávio Eduardo Silva, foi claro: “Se o intérprete não sabe ciência pode ter dificuldade”. 

Não à toa, esses intérpretes estão com a equipe há anos, tomando contato diário com o universo científico. “São craques em biociências”, brinca Rumjanek.

Voluntário
Bruno Santos, deficiente auditivo, explica em Libras para um voluntário da plateia como usar a pipeta. (foto: Thiago Camelo)

Dois intérpretes acompanharam a oficina, que também tinha na plateia deficientes auditivos. Um dos alunos formados no curso de extensão em biociências, Bruno Santos, fez as vezes de professor e ajudou um voluntário da plateia num experimento simulado. O objetivo: fazer o voluntário vivenciar a experiência de não entender aquilo que está sendo pedido. Como? Santos, que é deficiente auditivo, deveria dar as instruções apenas em Libras, linguagem que o voluntário não dominava. O resultado, penoso e custoso, traduz a dificuldade do surdo.   

“E olha que é muito mais fácil para um surdo ensinar ao ouvinte que o contrário”, diz Julia Barral, uma das pesquisadoras da equipe do IBqM.  “Eles já têm mais experiência, até mesmo na linguagem facial; a gente é mais tímido.”

Barral falou, na oficina, sobre o glossário científico em Libras que o grupo de professores, alunos e intérpretes vêm criando ao longo dos anos. São três fascículos separados em temas distintos: sistema imune, sangue e célula. Um sobre embriogênese também está a caminho. Todos os fascículos trazem DVDs, com conceitos explicados e com a imagem dos intérpretes fazendo os sinais. No futuro, a ideia é que todo esse material fique hospedado em uma página na internet e que esses termos em Libras ganhem o mundo. No Facebook, já é possível dialogar com os criadores dos fascículos

Assista a alguns exemplos de sinais
do glossário científico em Libras

“Uma das questões dos sinais é a aceitação deles pela comunidade que tem deficiência auditiva”, explica o intérprete com formação em letras Tiago Batista. “Mas a cultura da linguagem de sinais é transmitida boca a boca, ou melhor, mão a mão; esses meninos que formamos precisam voltar aos seus colégios, ir aos seminários, dar palestras para que os termos sejam reconhecidos.”

Barral faz questão de afirmar o cuidado que tem – como ouvinte – de não impor suas opiniões aos deficientes auditivos. “Sabemos que não existem termos científicos em Libras, que é uma língua viva, queremos apenas abrir as portas da ciência para os deficientes”, diz. “Por isso, estudamos muito, discutimos, inclusive com intérpretes e deficientes auditivos, para que o nosso glossário seja aceito.”

Ciência Hoje na oficina

A revista Ciência Hoje serviu de exemplo em dois momentos da oficina. No primeiro, a colaboradora do IBqM Roberta Savedra propôs uma atividade de leitura de um artigo da CH ‘com os olhos’ dos surdos, simulando o conhecimento que a maioria deles tem da língua portuguesa. Foi difícil entender alguma passagem. 

Documento
Você entende alguma coisa? Pois é, segundo os palestrantes da oficina, é assim que a maioria dos surdos apreende um artigo científico. (foto: Thiago Camelo)

Num segundo momento, uma deficiente auditiva leu um artigo da CH sem fotos e explicou o que tinha entendido dele. A explanação foi bastante rasa. Depois, a mesma menina leu o artigo, dessa vez com a ajuda de fotos. Sem dúvida, foi outra compreensão. O exemplo serviu de gancho para Rumjanek sugerir um olhar mais atento aos deficientes auditivos, tanto por parte da população quanto por quem presume, erroneamente, que o surdo lê perfeitamente o português.

“O surdo no mundo do ouvinte é invisível; quando a pessoa é cega, querem ajudar, com cadeirante acontece o mesmo, já o surdo é visto como um mal-educado, que não responde quando chamado; nós nos preocupamos menos com eles, eles não têm uma ‘marca’ clara”, analisa Rumjanek .

Fique ligado:
A programação comemorativa dos 30 anos do ICH na Casa da Ciência termina no próximo domingo (8/7), com uma oficina sobre física e outra sobre microbiologia e o encerramento da exposição ‘Ciência Hoje 30 anos’. Durante esta semana, ainda acontecem duas palestras: amanhã (4/7) o físico Martín Makler fala sobre ‘Astronomia hoje’ e, na sexta-feira (6/7), o físico Ivan S. Oliveira aborda o tema ‘Computação hoje’.

Confira a programação completa da festa.  


Thiago Camelo
Ciência Hoje On-line