O polonês Ludwik Fleck (1896-1961) não foi sociólogo, historiador ou filósofo – era médico. A despeito disso, seu pensamento influenciou intelectuais de todas essas áreas, dentre eles, nomes de peso como o físico e historiador das ciências norte-americano Thomas Kuhn (1922-1996) e o filósofo e antropólogo francês Bruno Latour (1947-).
Kuhn reconhece que o ensaio Gênese e desenvolvimento de um fato científico, escrito por Fleck em 1935, antecipa muitas de suas próprias ideias, como conta no prefácio de A estrutura das revoluções científicas, um dos livros mais influentes dos estudos de história e filosofia da ciência. A menção de Kuhn a Fleck fez com que o nome do polonês ganhasse projeção e despertasse o interesse de pesquisadores nos Estados Unidos e no resto do mundo.
Agora, leitores brasileiros poderão ter acesso às ideias do médico com o lançamento da tradução em português da obra. A edição foi lançada durante o Colóquio de História e Filosofia da Ciência: Ludwik Fleck, evento promovido em setembro pelo grupo de teoria e história da ciência e da técnica Scientia & Technica, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Na obra, lançada originalmente na Suíça, Fleck discute como se dá a produção do conhecimento e como são formados os fatos científicos. Para o pensador polonês, eventos da esfera da ciência como o surgimento de uma nova doença ou de uma bactéria não são realidades dadas e prontas para serem descobertas, mas construções de uma comunidade específica, que compartilha uma certa forma de pensar e perceber os fenômenos que investiga.
“O pensamento de Fleck é tão rico porque ele tinha uma forma muito própria de filosofar; era um cientista tentando compreender o que estava fazendo”, diz o linguista Johannes Ferh, diretor do Ludwik Fleck Zentrum, em Zurique, na Suíça, local onde se encontra o acervo do polonês. Os arquivos – em alemão – podem ser acessados pela página do centro.
Estilo de pensamento
O modo peculiar de Fleck de pensar e enxergar seu objeto de estudo é o que ele chama de “estilo de pensamento”. Já o grupo que se organiza em torno de um mesmo estilo – como uma equipe de cientistas que tenta compreender os mecanismos de evolução do vírus HIV, por exemplo – constitui um “coletivo de pensamento”.
Cada um desses profissionais participa também de muitos outros coletivos de pensamentos. Ao transitarem entre eles, eles promovem fluxos de ideias e conceitos e geram transformações mútuas desses estilos.
Gradativamente, esse movimento leva à alteração dos estilos de pensamento e, por conseguinte, da forma de se tratar um problema científico, como ocorreu com a passagem da física clássica newtoniana para a física moderna einsteiniana.
Os dois conceitos são centrais para entender a maneira pela qual Fleck encarava a ciência: uma atividade coletiva, que implica debates e divergências, não é consensual e apresenta respostas provisórias, sempre.
“Estilo de pensamento” e “coletivo de pensamento” são apenas algumas das expressões que Fleck cunhou para expressar suas ideias, inovadoras para a época. Para dar conta do desafio de vertê-las para o português, o tradutor Georg Otte, professor do curso de Letras da UFMG conta ter feito uma extensa pesquisa, para contrastar o texto do ensaio com os poucos artigos do médico sobre teoria da ciência.
Novo fôlego
De acordo com Mauro Condé, organizador do colóquio e professor do Departamento de História da UFMG, o interesse pelo pensamento de Fleck tem ganhado novo fôlego na Europa e no Brasil nos últimos 20 anos.
“Professores que tiveram contato com a obra do médico através de outros autores foram orientando alunos, formando um grupo que utiliza seus conceitos em análises”, conta o historiador. A redescoberta de Fleck foi desencadeada pela publicação em 1979 da edição em inglês do livro que acaba de sair no Brasil.
Condé acredita que a teoria do polonês seja mais adequada para pensar questões ligadas à atividade cientifica, com uma abordagem mais complexa.
“Uma das sofisticações que o pensamento de Fleck apresenta, em comparação ao de outros estudiosos, como Thomas Kuhn, por exemplo, é essa ideia de que não há uma ruptura radical entre dois modelos teóricos, mas sim uma continuidade com mudanças, como uma mutação em um ser vivo”, explica.
A fim de intensificar a relação entre os pesquisadores do cientista no país, durante o colóquio foi lançada a Rede Fleck Brasil, que reunirá acadêmicos de Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro e Santa Catarina. “O propósito é ampliar o nosso trabalho, trocando artigos, teses e estreitando o contato com outros interessados na obra do Fleck, inclusive na Europa”.
O historiador da ciência Mauro Condé (UFMG) fala da importância de se estudar a obra de Fleck hoje:
Uma questão vital
Fleck cresceu num ambiente multicultural: Lwów, a cidade em que nasceu, em 1896, tinha sua identidade formada pela fusão das culturas polonesa, austríaca e alemã, o que contribuiu para que ele conhecesse pensamentos de outras áreas, como a filosofia e a psicologia, especialmente a Escola da Gestalt, e os unisse ao analisar sua atividade. “Para Fleck, entender seu papel como cientista e como cidadão era uma questão de vida e não apenas profissional”, avalia o lingüista Johannes Ferh.
A microbiologia, talvez o principal interesse do pensador polonês, responde pela maior parte de sua produção bibliográfica – foram mais de 170 artigos, publicados em periódicos da área a partir de 1927. Já a produção sobre teoria da ciência, um número bem menor de escritos, está disponível na internet, em inglês.
Episódios da vida pessoal do médico também afetaram o andamento e o reconhecimento de sua obra: judeu, Fleck foi preso no gueto de sua cidade, em 1941 e, mais tarde, enviado, junto com sua mulher e seu filho para os campos de concentração de Auschwitz, na Polônia, e de Buchenwald, na Alemanha. Durante a prisão, foi obrigado a trabalhar no desenvolvimento de vacinas contra o tifo, doença que causava muitas mortes entre as tropas alemãs.
Libertado em 1945, com a saúde bastante debilitada, Fleck permanece na Europa até 1956, quando parte para Israel, onde morava seu filho desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Com um câncer nos linfonodos diagnosticado em 1956, morre em 1961, devido a um infarto.
Ludwik Fleck (tradução: Georg Otte
e Mariana Camilo de Oliveira)
Belo Horizonte, 2010, Fabrefactum
205 páginas – R$ 40,00 Tel: (31) 2515 2277
Desireé Antônio
Especial para a CH On-line