Como sabemos onde estamos e para onde devemos seguir para chegar a determinado local? A resposta está em um sistema cerebral que registra o nosso posicionamento e cria uma espécie de mapa do espaço ao nosso redor, um verdadeiro GPS mental. Por descobrir as células que constituem esse sistema, o norte-americano naturalizado britânico John O’Keefe e o casal de noruegueses May-Britt Moser e Edvard Moser foram agraciados com o Nobel de Medicina deste ano.
Por incrível que pareça, até 1971, os cientistas não sabiam bem como nós éramos capazes de nos localizar e mover no espaço. As especulações recaiam mais na área na filosofia, com teorias como a do alemão Immanuel Kant – que, no século 18, defendia que essa habilidade mental existia a priori, ou seja, independia da experiência.
Até que John O’Keefe, então na University College London, no Reino Unido, descobriu o primeiro componente do nosso GPS interno. Ao gravar e analisar a atividade cerebral de ratos que corriam livremente por um determinado espaço, ele notou que certo tipo de células nervosas do hipocampo era ativado toda vez que os animais assumiam um mesmo ponto no espaço. Para cada ponto de um local visitado, uma mesma célula neural era ativada.
Mais tarde, o pesquisador, junto com o psicólogo Lynn Nadel, criou a hipótese de que essas células, batizadas de ‘células de lugar’, seriam as responsáveis por criar mapas espaciais mentais que são armazenados como memória e reativados novamente quando os animais são expostos a ambientes conhecidos. Em 2006, um estudo com pacientes epiléticos monitorados durante convulsões mostrou que os humanos também têm essas células e que elas provavelmente funcionam da mesma maneira que nos ratos.
A ideia de um mapa cognitivo espacial foi desenvolvida anos antes, em 1948, pelo psicólogo norte-americano Edward Tolman, mas até a descoberta de O’Keefe não tinha nenhuma base empírica. “Ele encontrou o primeiro substrato biológico para os mapas cognitivos”, comenta o neurocientista Martin Camarota, do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). “A memória espacial não fica armazenada em um neurônio, a memória é feita da modificação do padrão de conexões entre as células neurais e é nesse padrão que se acredita que está codificado o mapa cognitivo que permite ao indivíduo determinar sua localização no espaço e prever sua movimentação futura.”
Mapa universal
A ideia de O’Keefe continuou a ser aprimorada até receber uma importante complementação do casal May-Britt Moser e Edvard Moser, então estudantes de doutorado em psicologia na Universidade de Oslo (Noruega), onde chegaram a ser orientados por ele a distância. Na década de 1990, os Moser queriam entender como a informação flui entre as células de lugar, então desativaram outras regiões do cérebro de ratos, para saber se os sinais elétricos estavam vindo de fora ou não e de onde vinham.
Depois de repetir a ação para várias regiões cerebrais, eles descobriram que os sinais tinham origem em uma área posterior do cérebro, chamada córtex entorrinal, e começaram a estudá-la.
O casal começou a notar que células nervosas dessa região emitiam sinais elétricos toda vez que um rato se dirigia para um ponto específico e pensaram que talvez estivessem vendo algo semelhante às células de lugar.
Mas logo eles perceberam que essas células eram ativadas a todo instante, como se estivessem mapeando os movimentos dos animais enquanto eles andavam, não importando o ponto em que estavam.
Após anos de pesquisa, em 2005, eles identificaram um curioso padrão na ativação dessas células, que batizaram de ‘células de grid ou rede’. A sua ativação no cérebro sempre forma o desenho de uma rede hexagonal, que parece independer do caminho feito pelo rato ou das informações do ambiente. É como se no cérebro dos animais houvesse um código universal usado como base para a construção cerebral dos mapas – ideia em consonância com a filosofia kantiana.
“Algumas vezes as descobertas científicas vêm em momentos de insight, mas no nosso caso não foi bem assim, não reconhecemos logo de cara que as células formavam essa malha”, diz May-Britt Moser no site do Instituto Kavli de Sistemas de Neurociência, onde hoje chefia um laboratório com o marido. “Com o tempo, percebemos que essas células mantinham o padrão em qualquer ambiente, sugerindo que estávamos no encalço de um mapa espacial universal.”
Os cientistas acreditam que a malha de padrão hexagonal seja uma solução matematicamente perfeita que o cérebro usa para medir as distâncias e adicionar métrica aos mapas mentais do hipocampo. Para funcionar, o órgão lança mão ainda de informações de outros dois tipos de células, descobertas recentemente pelos Moser e que indicam a posição da cabeça do animal e a proximidade com paredes e barreiras físicas.
Juntas, todas essas células formam um sistema eficiente de localização e navegação espacial no cérebro dos ratos – e muito provavelmente no cérebro humano e de todos os mamíferos. As células de lugar oferecem informação semelhante às coordenadas de longitude e latitude, enquanto as de rede auxiliam no reconhecimento das trajetórias tomadas.
Memória em questão
As descobertas premiadas com o Nobel abrem caminho para entender processos cognitivos complexos, como a memória de maneira geral, o pensamento e o planejamento. Apesar de ser apenas uma hipótese, a ideia dos mapas cognitivos e de que as células de lugar têm papel fundamental na memória espacial tem ganhado força com alguns estudos.
Em 2011, uma pesquisa inglesa mostrou que o hipocampo de taxistas de Londres que se movem pela cidade sem usar mapas físicos tem maior volume se comparado com o da população em geral. Os cientistas acreditam que isso seria uma evidência de que esse tipo de memória pode ser fortalecida com treinamento.
Esse tipo de associação logo levantou a especulação de que as pesquisas agraciadas com o Nobel pudessem ter impacto na compreensão e no tratamento de doenças ligadas à memória, como o Alzheimer. Pacientes com esse mal frequentemente têm problemas de localização e orientação espacial, além da perda de outros tipos de memória.
“É possível que a perda de orientação espacial em quem tem Alzheimer se deva à morte das células de lugar, mas eu não iria além daí”, comenta Camarota. “As pesquisas de O’Keefe têm mais de 40 anos e as dos Mosers quase 20 e não estamos mais perto de uma cura para o Alzheimer por causa delas. Elas contribuíram muito para a compreensão do processo de informação espacial, mas não especialmente para o Alzheimer.”
Metade do prêmio de 8 milhões de coroas suecas, cerca de 2,5 milhões de reais, será destinada a O’Keefe e a outra metade dividida entre o casal Moser. Ao longo da semana, serão anunciados os laureados com o Nobel em outras áreas.
Sofia Moutinho
Ciência Hoje On-line