Naquela tarde de abril de 2011, primavera na Itália, a maioria não sabia. É bem provável que continue não sabendo. Pompeia – a cidade declarada patrimônio mundial da humanidade pela Unesco – está em crise. Não bastasse a chaga de ter sofrido um forte terremoto no ano 62 e ficado enterrada por séculos (do ano 79 até 1748, quando começaram as primeiras escavações arqueológicas) devido à erupção do Vesúvio, a chuva, em pleno século 21, resolveu cair com força sobre a cidade histórica do Império Romano.
No final de 2010, algumas casas e construções com mais de 2 mil anos desabaram com as águas. A tragédia arqueológica deflagrou uma convulsão na política cultural italiana. Todas as críticas recaíram sobre a Superintendência Arqueológica de Nápoles e Pompeia, órgão governamental responsável por administrar e preservar o parque da região de Campânia.
As acusações: o dinheiro público (e privado, já que há muitas doações) usado para preservar e escavar Pompeia não estaria sendo administrado com o rigor adequado e a prova maior disso seriam os desabamentos.
A preocupação tem fundamento. Primeiro: Pompeia é um sítio arqueológico de importância ímpar e guardou – no ar escasso e com poucos microrganismos –, ‘embrulhada’ em cinzas, uma verdadeira cidade da Roma Antiga. Ruas, templos, praças, anfiteatros e estádios; a vida no começo do primeiro milênio ficou encapsulada no tempo, à espera da primeira escavação.
Além disso, uma indústria gira em torno de Pompeia. Mais de 2 milhões de turistas visitam anualmente os 66 hectares (0,66 km²) da cidade. Compram lembranças, comem em seus restaurantes, hospedam-se nas cercanias.
Pois bem. Desde os desabamentos, o clima em Pompeia é de cuidado, receio e disputa política. Alheios às chuvas do passado e a crise do presente, centenas de pessoas esperam pacientemente a fila para comprar o bilhete e entrar no parque. Entre eles, estão minha namorada e eu – ambos também alheios às águas em Pompeia, fato que só viríamos a ter conhecimento dias depois, em conversa com colegas da Itália.
Parque de diversão
Os primeiros minutos em Pompeia confundem. Ganhamos um mapa enorme com 72 lugares para visitar no sítio, dos quais no máximo dez estavam em guias ou revistas especializadas. Quando olhamos o tamanho do ‘problema’, decidimos alugar um audioguia para entender melhor a cidade (ferramenta plenamente aprovada).
Entramos em Pompeia. A maioria dos visitantes começa por Porta Marina, estrada que corta toda a cidade. Com a concentração absurda de turistas por lá, somada à falta de referência – por onde começar? –, bate aquela sensação de “estou em um parque de diversão e me meti em uma roubada”.
A angústia passa muito rapidamente, pois a multidão se dissolve pelas tantas ruelas do lugar e só se encontra novamente nos pousos-chave, como os principais templos e praças. No mais, não há filas e nem a sensação estranha de viagem-rebanho que todo mundo tem quando visita um óbvio lugar turístico.
Em uma reportagem antiga de jornal afixada do lado de fora de Pompeia, a jornalista avisa: “o ideal é passar seis horas em Pompeia. Seis horas??? Sim, seis horas. Parece muito, mas quando a cidade te captura, não há muito a fazer senão ficar e aproveitar”.
Adianto: ficamos sete horas em Pompeia. Dá vontade de abraçar aquele mundo e entrar em cada espaço soterrado há 2 mil anos pelo Vesúvio.
Vulcão, aliás, que espreita a redondeza. Uma força da natureza que parece não ter parado de pulsar. É curioso ler o aviso: “O Vesúvio ainda é um vulcão ativo, mas não entra em erupção há muitos anos. Você está seguro aqui”.
Vai a sugestão: ler sobre a erupção, as escavações e a preservação da cidade torna tudo muito mais interessante. Dá a dimensão do que aquilo representa. Descobre-se, por exemplo, a relação que Plínio, o Velho, fundamental naturalista e líder militar do século 1, tem com a tragédia.
Foi ele, talvez, a única pessoa a entender a dimensão do que acontecia ali – a erupção de um vulcão. É de se imaginar: apenas ele, homem viajado e de curiosidade obsessiva pelos fenômenos da natureza, já tinha estudado e visto uma estrutura geológica parecida. Sabia, portanto, do poder de um vulcão (um documentário da BBC explica melhor as qualidades de Plínio, o Velho).
O naturalista estava hospedado a poucos quilômetros de Pompeia. A salvo da erupção, mas perto o bastante para presenciar o seu começo. Não satisfeito em apenas ver, Plínio partiu para uma jornada (hoje, sabe-se, suicida) em direção a Pompeia, motivado por uma curiosidade irracional. Seu sobrinho, Plínio, o Jovem, não foi. Ficou no conforto da distância observando o que acontecia. E documentou, por meio de uma carta, tudo o que viu. Até hoje, é o único relato daquele dia.
Até a descoberta de Pompeia, no século 18, acreditavam que a carta de Plínio, o Jovem, era delirante. Hoje, não mais: a descrição da explosão de gases, vapor de água e fragmentos de rocha não só é possível como de fato aconteceu. Atualmente, erupções com as características observadas por Plínio são conhecidas como ‘plinianas‘.
De volta a Pompeia. É abril de 2011 e o Sol da primavera deixa toda a cidade antiga ainda mais marrom. É bem verdade que ladeando Pompeia veem-se dezenas de árvores que furtam o monocromatismo da região. Estamos já em hora adiantada da tarde caminhando pelo Jardim dos fugitivos (Orto dei fuggiaschi, em italiano), lugar em que, finalmente, esbarra-se com aquilo que mais ansiávamos encontrar: nomear é difícil, mas chamemos de ‘corpos’.
Como se formam os corpos: logo nas primeiras escavações em Pompeia, acharam-se centenas de ‘buracos’ dentro das cinzas, formas ocas que sugeriam pessoas. O arqueólogo italiano Giuseppe Fiorelli, responsável pelas escavações na época, teve a ideia de preencher aquele ‘vazio’ com gesso. A brilhante técnica, usada até hoje (lembrete: 1/3 de Pompeia ainda não foi escavado), revelou as formas por baixo das cinzas. Os ‘corpos’ de pessoas ‘congelados’ no momento de sua morte.
Em Viagem a Itália, de Roberto Rossellini, a personagem de Ingrid Bergman tem uma crise de choro quando vê um casal (homem e mulher, mãe e filho?) deitado e engessado no segundo da morte.
Na entrada do Jardim dos fugitivos, há uma frase de 1863 do escritor Luigi Settembrini: “Eles morreram há 18 séculos, mas mesmo hoje esses homens são vistos em agonia. Não é arte, nem imitação; são os ossos e as lembranças da carne e do vestuário misturados com gesso. É a dor da morte recapturada nos seus corpos e nas suas posturas”.
Faço minhas as sensações da personagem de Bergman e as palavras de Settembrini.
A saber: a qualquer momento novos ‘corpos’ podem aparecer. As escavações em Pompeia continuam lentas e graduais. Esbarramos com um grupo de arqueólogos franceses. Eles desbravavam uma das casas da cidade. Em rápido bate-papo, explicaram que é muito difícil conseguir financiamento e permissão para trabalhar em Pompeia e que estar ali, para eles, era um sonho. Sonho que duraria apenas um mês, pois logo teriam de ceder lugar a outros pesquisadores, especialistas que vêm de todos os lugares do mundo para trabalhar na cidade.
Aliás, as escavações que acontecem ali diariamente despertam a paradoxal sensação de que, apesar de se estar andando em meio a uma cidade morta, Pompeia é um museu em tempo real. Como se o passado nunca fosse subjugado pelo inevitável futuro. Como se a cidade, de alguma forma, falasse também daquilo que está por vir.
A Lua vai substituindo o Sol em Pompeia. A essa altura, já está perto da hora do fechamento do parque, às 19h30. Sozinhos no meio de um anfiteatro – onde os gladiadores matavam e morriam – absurdamente bem preservado, conversamos sobre a experiência pela qual tínhamos acabado de passar. Conversamos inclusive sobre o fato de estarmos ali no anfiteatro, pisando em solos de antes de Cristo, sem guardas, câmeras ou mesmo pessoas à vista.
Nunca havíamos passado por uma experiência desse tipo: a de estar em um lugar com tamanho valor histórico e cultural, ao ar livre, com a possibilidade de tocar em quase tudo, de entrar em quase tudo. Ali, a sós no anfiteatro, antes de saber que qualquer chuva caiu em Pompeia e fez desabar algumas edificações, já rogamos: cuidem da cidade, mas não cogitem as sugestões de fechá-la para visitação.
Assista ao flagra de arqueólogos
trabalhando em Pompeia
Thiago Camelo
Ciência Hoje On-line