O que há de humano em nós?

Imagine um torneio como esse: você e um chatbot (programa computacional especializado em bater papo) conversam por mensagens de texto enquanto juízes isolados tentam descobrir quem é o humano e quem é a máquina. Pode parecer uma premissa surreal, mas trata-se do prêmio Loebner, criado em 1991 com base num teste proposto pelo matemático britânico Alan Turing, um dos ‘pais’ da ciência computação. Tal competição serve de pano de fundo para o livro O humano mais humano, o primeiro do filósofo Brian Christian, lançado este ano no Brasil. 

O teste proposto por Turing tinha como objetivo avaliar a inteligência artificial, descobrir se máquinas seriam capazes de ‘pensar’ de forma inteligente, derrotando seus concorrentes humanos. Ele acreditava que esse dia não tardaria a chegar – previsão até hoje não concretizada. No livro, Christian embarca no time dos ‘confederados’ – o grupo que põe à prova sua humanidade – na edição de 2010 do prêmio Loebner. 

Christian não se interessa apenas pela questão da reafirmação do homem sobre a máquina, mas quer conquistar um título mais obscuro do prêmio Loebner: o de ‘humano mais humano’

A competição, criticada por muitos – o que, aliás, é pouquíssimo abordado pelo autor –, confere a cada ano o título de ‘computador mais humano’ àquele que melhor engana os juízes. A expectativa para 2010 era enorme, uma vez que a vitória humana fora bem apertada no ano anterior. 

Mas o autor não está preocupado apenas com a reafirmação do homem sobre a máquina. Seu grande objetivo é conquistar um título mais obscuro do torneio: o de ‘humano mais humano’. A jornada serve como fio condutor de uma trajetória deveras filosófica, a qual explora registros das edições anteriores, conversa com especialistas de todo tipo – entre programadores, filósofos, psicólogos, linguistas, historiadores e até advogados – e percorre campos que vão da robótica e da filosofia aos jogos e à sedução. Tudo isso norteado pelo primeiro conselho que recebe, o mais óbvio e ao mesmo tempo o mais complexo de todos: seja você mesmo. “Mas será que somos humanos quando somos nós mesmos?”, indaga. 
 

O apocalipse está em nós

Em suas 367 páginas, o livro propõe um debate existencial que discute conceitos como ‘alma’ e o sentido da vida desde a Antiguidade. Envereda, ainda, por questões sobre morte, memória, entropia, inventividade, funcionamento do cérebro e interação homem-máquina. Em uma das passagens mais interessantes, vai de Aristóteles a Descartes para concluir que uma das maiores ironias da inteligência artificial é que ela ‘ataca’ a trincheira que considerávamos mais segura e diferencial da humanidade: o raciocínio.

Capa Humano mais humanoDistante, no entanto, do lugar-comum dos filmes apocalípticos, mostra a tecnologia não como nêmesis, mas como útil para superar nossas limitações (como na interação com a neurociência) e para abrir os olhos da humanidade sobre seus outros trunfos. “Quem diria que [o computador] guiaria um míssil antes de uma bicicleta, criaria prelúdios plausíveis de Bach antes de bate-papos plausíveis”, indaga. “Esquecemos do que é de fato impressionante e os computadores estão nos lembrando disso.” 

Dessa forma, o livro joga luz sobre o processo de organização social humana. Em especial, aborda a automatização e especialização que levam à mecanização de nossas relações e atividades, num processo que nos transforma em máquinas bem antes de existir tecnologia para nos substituir – outra prova a favor da ‘absolvição’ da IA. “O câncer é a eficiência, a inteligência artificial é a terapia com larvas”, decreta.

Xadrez, paquera e um livro

Um olhar científico transdisciplinar sobre comportamentos ‘imitáveis’ pela máquina traz vislumbres fascinantes sobre nossas práticas de comunicação e interação, muitas vezes presas entre convenções e generalidades. Nesse sentido, o estudo dos próprios chatbots foi fonte crucial de aprendizado para Christian: além de resgatar casos famosos, como o de Eliza, de 1964, que chamou a atenção por convencer como terapeuta, Christian estudou programas como o Cleverbot, uma ‘Wikipédia da conversação’ duas vezes vencedora como ’computador mais humano’ do torneio, e seus sucessores Elbot (de 2007) e Ultra Hall (de 2008). A análise ajudou a identificar armadilhas comuns que limitam a expressão de nossa humanidade.

É compreensível, mas ainda assim decepcionante, que, nesse ponto, Christian tenha se limitado ao estudo de chatbots e não abordado outras áreas de grande florescência da inteligência artificial, como os jogos digitais. Embora de natureza bem diferente, os games representam uma importante fronteira dessa tecnologia e uma indústria que investe recursos em pesquisas na área. Aliás, em 2012, um programa conseguiu vencer, pela primeira vez, uma variante do teste de Turing específica dos jogos digitais

Kaspárov
A partir do exemplo e dos pensamentos do enxadrista russo Gari Kaspárov, Christian debate a importância de ‘sair do livro’ de práticas pré-programadas para se agir de forma verdadeiramente humana. (foto: SESI SP/ Flickr – CC BY-NC-ND 2.0)

De volta à obra, outra passagem imperdível estabelece uma analogia entre as relações humanas e a famosa partida de xadrez entre o Gari Kaspárov e o computador Deep Blue: apesar de derrotado pela máquina, o russo não reconheceu o mérito do adversário. Ele argumentou que errou ainda na abertura da partida decisiva, quando o computador guiava-se apenas por aberturas ‘de livro’, gravadas em sua memória – ou seja, sem jogar de verdade. 

Christian lembra, porém, que os ‘livros de abertura’ não existem apenas no mundo digital. Ele critica as técnicas usadas por certos gurus da sedução, que trocam a interação real por discursos sedutores pré-prontos, e defende a importância de ‘sair do livro’ em nosso dia a dia, superar ‘movimentos’ maquinais e superficiais que impedem uma interação verdadeiramente humana – pense nisso, por exemplo, na próxima conversa no táxi ou no elevador e tente marcar alguns pontos extras para a humanidade!  

O mais humano?

O livro termina, é claro, logo após a competição de 2010 – a humanidade manteve sua invencibilidade, de ‘lavada’. Mas talvez você esteja se perguntando se tanta preparação deu a Christian o título que ele tanto almejava. Bom, não precisamos estragar o final, certo? Mas é simplesmente fascinante observar as reações muito ‘humanas’ do filósofo ao descrever sua experiência no momento da competição em si – em especial ao deixar um pouco de lado o objetivo coletivo e lamentar a identificação imediata entre um dos ‘confederados’ e um dos juízes do prêmio, ambos canadenses e fãs de hockey. Só mais uma das pequenas reflexões provocadas por O humano mais humano, uma bela obra que pode redefinir sua visão sobre a tecnologia e, principalmente, sobre a humanidade.

O humano mais humano
Brian Christian
Companhia das Letras
367 páginas – R$55,00
Marcelo Garcia
Ciência Hoje On-line