Tradicionalmente, os censos brasileiros realizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) classificam a população dentro de cinco categorias étnicas: brancos, pardos, negros, índios e amarelos. É claro que essa metodologia, cujas bases foram introduzidas no país ainda no século 18, tem sua utilidade, mas está longe de refletir a grande diversidade de nosso povo.
A aplicação de uma cartografia social, baseada no conhecimento das muitas comunidades tradicionais espalhadas pelo território nacional, pretende expressar exatamente essa diversidade. Ao dar aos próprios membros desses grupos o poder do mapeamento de seus territórios, a abordagem os coloca no papel de protagonistas de sua própria identidade. Os mapas dessa nova cartografia refletem o entendimento dessas pessoas sobre o próprio território e a relação de sua cultura com esse espaço.
O principal trabalho desse tipo realizado no Brasil, o Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia, foi apresentado na terça-feira (24/7) pelo antropólogo Alfredo Wagner Berno de Almeida, da Universidade do Estado do Amazonas, em palestra promovida pelo Instituto Ciência Hoje na 64ª Reunião Anual da SBPC.
O pesquisador mostrou alguns dos materiais produzidos pelo projeto, que tem atuado em parceria com comunidades tradicionais – quilombolas, pescadores, ribeirinhos, quebradeiras de coco babaçu, cipozeiros, entre outras – espalhadas pela maioria dos estados brasileiros. O trabalho já gerou cerca de 150 fascículos com mapas sobre diferentes comunidades, além de 15 filmes, 30 livros e 13 exposições.
Almeida vê a cartografia social como um recurso para auxiliar e dar mais precisão ao discurso da etnografia e da antropologia. Suas principais preocupações passam tanto pela compreensão do patrimônio cultural desses povos quanto pela forma como essas pessoas definem suas próprias identidades e territórios.
“O antropólogo Benedict Anderson inclui o mapa, o censo e o museu como três das principais bases para a ideia de nação, ao materializar o território, sua população e sua respectiva cultura”, citou Almeida. “Hoje, o Estado perdeu o monopólio desse mapeamento e temos a oportunidade de promover uma reconstrução dessa nação, de forma menos monolítica, mais complexa e socialmente mais inclusiva, capaz de refletir melhor a diversidade existente.”
Conheçam-se a si mesmos
A criação de todo esse material conta com a participação intensa e decisiva das próprias comunidades mapeadas. Os pesquisadores ensinam a membros escolhidos pela comunidade noções básicas de legislação ambiental e da utilização de GPS e ArcGIS (programa de computador utilizado para produção de mapas). É esse grupo de parceiros que decide o que será mapeado, de acordo com aquilo que sua própria cultura e tradição consideram relevante.
O mapeamento é realizado por eles mesmos, assim como a produção de fotos e vídeos. Os mapas elaborados são, então, aprovados pelas comunidades, que também escolhem as colorações e os ícones personalizados que melhor representem sua visão do território. Um detalhe: segundo Almeida, o mapeamento parte sempre de um convite da comunidade para entender melhor questões locais, nunca é imposto.
O antropólogo destacou que o projeto traz benefícios para as comunidades tanto em aspectos identitários quanto em novas possibilidades para enfrentar a pobreza. “A elaboração desses mapas é uma valorização inédita do conhecimento e da cultura desses grupos e uma prova de que é possível formar bons pesquisadores fora dos grandes centros”, avaliou. “Isso poderá contribuir para modificar a própria comunidade científica nacional e representa uma aplicação do saber tradicional como ferramenta para superar a pobreza.”
Para Almeida, o Brasil está passando por uma transição na valorização das culturas tradicionais. “Ao mesmo tempo em que o governo federal reconhece os povos e comunidades tradicionais, associados ao desenvolvimento sustentável e a uma expectativa de direito territorial, uma portaria publicada neste mês desrespeita diretamente os mesmo direitos territoriais dos indígenas.”
O pesquisador deixou claro que o projeto não pretende ser uma resposta final a essas questões e muito menos um modelo a ser aplicado indefinidamente no Brasil. “Na verdade, nossa iniciativa é um exercício que tem levantado mais indagações do que respostas, mas que tem papel relevante ao promover a problematização da questão territorial e cultural desses grupos”, avaliou.
A diversidade na prática
A questão da territorialidade é aguda em todo o país e envolve mais do que o espaço físico, mas os modos de viver e entender território inerentes a diversas culturas. “Por exemplo, recentemente, comunidades de ribeirinhos do rio Japeri, na região amazônica, perderam sua classificação como pescadores artesanais por também se dedicarem à caça e ao extrativismo; só os pescadores comerciais mantiveram sua autorização para pesca”, pontuou. “Trata-se de uma clara confusão entre identidade e atividade econômica, que descredenciou aqueles que detinham o conhecimento local e afetou a biodiversidade da região.”
A questão torna-se ainda mais complexa pela dificuldade de se estabelecer uma definição para a identidade desses grupos tradicionais. Os povos faxinais, por exemplo, que ocupam o sul do Brasil, são uma mistura de ucranianos, poloneses, italianos, índios e quilombolas que não compartilham a mesma língua e não têm as mesmas crenças, mas enxergam a si mesmos como um povo único. “É preciso entender o critério que liga as pessoas em cada um desses grupos, como são estabelecidos os laços das próprias comunidades”, avaliou.
Outros exemplos interessantes são os cerca de 196 mil pomeranos do Brasil, um povo que não existe mais nem em seu continente de origem, a Europa, e a reivindicação da identidade indígena kuntanawa feita por um grupo de seringueiros do Acre. “A formação das identidades dos grupos tradicionais e seus aspectos territoriais são questões complexas e sujeitas a mudanças”, reafirmou. “Por isso, um mapeamento como esse é rico e pode ajudar, inclusive, no estabelecimento de políticas públicas em estados como o próprio Maranhão, que tem o pior Índice de Desenvolvimento Humano do país”, concluiu.
Marcelo Garcia
Ciência Hoje On-line