Autonomia, não maleficência, beneficência e justiça são os quatro princípios básicos da bioética no mundo. Eles também norteiam o marco legal brasileiro sobre ética em pesquisas com seres humanos, com o que a comunidade científica está de pleno acordo.
No entanto, a resolução nº 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, o tal marco legal, está longe de ser consensual. Para pesquisadores das áreas humanas e sociais, ela mira um modelo muito estreito de pesquisa experimental em saúde, e, portanto, não leva em consideração as especificidades dos estudos em seus campos.
“O modelo de pesquisa que está subjacente à resolução 196 nem sempre se adéqua e é justificável quando se consideram os diferentes modos de produção do conhecimento”, afirma a psicóloga Selma Leitão Santos, da Universidade Federal de Pernambuco.
Em nome da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia, que vem promovendo discussões sobre a regulamentação da ética em pesquisa no país, Santos abriu uma mesa-redonda sobre o tema nessa quarta-feira (13/7) na reunião da SBPC. O movimento organizado pela entidade coloca em xeque justamente a universalidade da resolução 196.
No momento, o que mais preocupa os pesquisadores engajados no movimento é a tramitação no Congresso de um projeto de lei (PLS 78/2006) que “estabelece punições para as violações às diretrizes e normas concernentes às pesquisas que envolvem seres humanos” e “visa transformar a resolução, da forma que está, em lei”.
O projeto já foi aprovado por duas comissões do Senado e encontra-se agora em análise na Comissão de Educação, Cultura e Esporte da casa. “Para nós, o avanço na tramitação desse projeto de lei é um problema mais do que solução, porque se calca numa situação ainda não suficientemente resolvida entre as diferentes áreas do conhecimento”, explicou Santos.
Distintas tradições
Uma série de documentos internacionais inspirou a resolução 196/96, como o Código de Nuremberg e as declarações dos direitos humanos e a de Helsinque. Mas o texto propriamente dito se apoia principalmente nas “Diretrizes éticas internacionais para pesquisas biomédicas envolvendo seres humanos” e amplia o conceito de pesquisa adotado no documento para estudos em todas as áreas do conhecimento.
“Surgem daí uma série de problemas”, desabafou a psicóloga Iara Coelho Zito Guerriero, coordenadora do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo, que também participou da mesa-redonda. “Quando se adota a definição de pesquisa biomédica e a amplia para qualquer área do conhecimento, isso pode não ser adequado, que é o que temos visto na prática nos CEPs.”
Guerriero lembrou que todo projeto de pesquisa no Brasil precisa passar pelo crivo de um CEP – hoje há cerca de 600 no país. No processo de submissão, o coordenador de um estudo qualitativo em ciências sociais, por exemplo, tem que seguir regras e partir de pressupostos incompatíveis com os seus objetivos e metodologia.
Ele tem que mostrar, por exemplo, que sua pesquisa tem “possibilidades concretas de responder a incertezas”, está “fundamentada na experimentação prévia realizada em laboratórios, animais ou em outros fatos científicos” e emprega “métodos adequados”. Além disso, deve descrever as “hipóteses a serem testadas”.
Por outro lado, as especificidades da pesquisa qualitativa não são levadas em conta, como o fato de ter foco voltado para melhorar as condições de vida dos voluntários e para fortalecer sua atuação nas comunidades em que vivem. “Estamos falando de tradições de pesquisa diferentes, de paradigmas de ciência distintos”, ressaltou a psicóloga.
Essas e outras incompatibilidades, segundo Guerriero – e membros da plateia que aproveitaram para compartilhar percalços semelhantes – acabam dificultando, atrasando e muitas vezes até inviabilizando o desenvolvimento do estudo.
Exemplo do norte
Guerriero vê na experiência canadense um exemplo de como é possível resolver o impasse. O país lançou em 1998 diretrizes para ética em pesquisas com seres humanos tão estreitas quanto as adotadas na resolução brasileira.
Assim como no Brasil, os pesquisadores das áreas de ciências humanas e sociais ficaram extremamente insatisfeitos. Eles constituíram um grupo de trabalho e passaram cerca de seis anos promovendo discussões, elaborando documentos e fazendo consultas públicas pelo país.
Resultado: a nova versão das diretrizes canadenses inclui um capítulo específico sobre a pesquisa qualitativa.
“Temos 13 resoluções vigentes no país [12 são complementares à 196/96] sobre ética em pesquisa com seres humanos e achamos plenamente possível criar uma 14ª para contemplar as pesquisas em ciências humanas e sociais”, concluiu Guerriero.
Carla Almeida
Ciência Hoje On-line
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