O Grito , tela de 1893 do pintor norueguês Edvard Münch (1863-1944)
Quando o professor de psicologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Jamil Zugueib Neto definiu o tema de sua tese de doutorado, defendida na Universidade de Toulouse, França, uma frase surgiu repentinamente em sua cabeça: “Ninguém pode com os drusos!”. A lembrança da frase, que fazia parte das histórias de infância contadas pelo pai libanês, instigou Zugueib a estudar a etnia drusa – uma das 17 que formam o povo do Líbano. Sob a perspectiva da psicologia social, os estudos e entrevistas realizados naquele país de 1996 a 1999 respaldaram sua tese, que, editada, deu origem ao artigo de abertura do livro Identidades e crises sociais na contemporaneidade , organizado por Zugueib e publicado recentemente pela Editora UFPR.
Por suspeitar que a história de uma etnia tão distante não chamaria a atenção do leitor brasileiro, Zugueib optou por transformar seu trabalho em artigo e reunir textos de outros oito autores sobre um tema bastante atual: as crises sociais. Esses artigos – que focalizam as diversas faces da violência e o impacto de situações extremas sobre os indivíduos – resultaram de trabalhos apresentados pelos autores no colóquio Identidades e multiculturalismo em tempos de crise , ocorrido em Curitiba em 2002. Os artigos discutem o impacto de episódios dramáticos no psiquismo humano.
Zugueib abre o livro com um perfil da etnia muçulmana drusa. Vistos por alguns como “povo bárbaro das montanhas”, os drusos fazem divergir a opinião de especialistas. A história desse povo está intimamente associada à guerra, sobretudo à guerra civil que teve início em 1975 e durou 16 anos. Tendo o Líbano como ‘tubo de ensaio’, o autor constatou o que ele chama de “vírus da violência”. Assim como seu pai o instigou a estudar a etnia ao lhe contar histórias na infância, um pai druso ensina a seu filho a dura realidade da vida e a necessidade de estar em constante estado de alerta. Afinal, a cultura drusa é marcada pela guerra.
Em sua pesquisa, o autor analisou histórias de gente que enfrentou esse drama desde a adolescência. “Alguns conseguem superar o trauma, outros ficam perturbados emocionalmente”, conta Zugueib, que ouviu uma pessoa que se apavora com a simples aproximação de um policial. “Eventos extremos que ocorrem no meio externo têm repercussão direta na subjetividade de cada um”, analisa. “A capacidade de compreender esse momento é que faz uma vítima de guerra superar o trauma.”
Apoiados pelo governo de Ruanda, os hutus exterminaram um décimo da população tútsi, sem considerar se a vítima era o vizinho ou o dono do mercado. Para o homicida, bastava o fato de a vítima pertencer à outra etnia. Para saber mais sobre o tema, leia Gostaríamos de informá-lo de que amanhã seremos mortos com nossas famílias: histórias de Ruanda , de Philip Gourevitch (Companhia das Letras, 2002).
A situação de tensão que caracteriza uma guerra pode ser evidenciada em outros locais e momentos históricos. Na guerra civil de Ruanda, África, em 1994, as diferenças étnicas explicam, mas não justificam, a matança dos tútsis pelos hutus ; na Alemanha nazista, o judeu é considerado arrogante e culpado pela crise, devendo por isso ser visto como inimigo e levado à morte.
Os conflitos têm explicação histórica, mas todos evidenciam o fim das relações simbólicas entre os grupos sociais e o conseqüente nascimento do ódio entre as pessoas. “O homem é paranóico por natureza; ele cria seu inimigo. O inimigo é sua identidade negativa; ele é tudo o que o outro não é”, diz Zugueib. Segundo o pesquisador, a identificação do inimigo (“o que eu não sou”) ajuda cada um a se identificar (“o que eu sou”) e explica a formação dos grupos sociais. Para se identificar, o indivíduo procura apoio em seu grupo de pertencimento. Não importa se o outro é seu amigo ou vizinho; o que importa é que ele pertence a uma etnia rival e, deve, portanto, ser perseguido e, se necessário, morto.
A crueldade é outra forma extrema da violência. “O ser humano está preparado para a violência, mas não aceita a crueldade”, diz Zugueib. Em um dos artigos de
Identidades e crises sociais , o psicanalista Paulo Endo analisa o caso do índio Galdino – o líder pataxó Galdino Jesus dos Santos, que foi incendiado por adolescentes quando dormia em uma praça de Brasília em 1997. Segundo Endo, a explicação dada pelos adolescentes (“Foi uma brincadeira; não sabíamos que era um índio, pensávamos que fosse um mendigo”) evidencia dois fenômenos: a pulsão da crueldade humana como meio de prazer (uma brincadeira), analisada por Sigmund Freud (1856-1939), e o problema da exclusão social, estudado pela filósofa Hannah Arendt (1906-1975). Ao contrário do índio, que tem direitos constituídos, o mendigo não possui direito algum. Assim como para um nazista é aceitável matar um judeu ou para um hutu é válido assassinar um tútsi, na concepção dos adolescentes a condição de mendigo justifica sua morte.
Os artigos da coletânea examinam várias formas de violência, inclusive a que se instalou e cresce no Brasil contemporâneo. Segundo Zugueib, as pequenas decepções diárias, as frustrações com as várias instâncias de governo ou a insegurança nas grandes cidades acabam funcionando como um conta-gotas na vida das pessoas. “Aos poucos esses aborrecimentos vão inoculando uma dose de tensão que, quando explode, não se sabe de onde veio.” A violência, diz o pesquisador da UFPR, ocorre quando esse estado de tensão se manifesta no comportamento das pessoas. “Em guerra estamos todos. No Líbano ela é evidente; no Brasil não”, conclui.
Identidades e crises sociais na contemporaneidade
Jamil Zugueib Neto (Org.)
Curitiba, 2005, Editora UFPR
Fone: (41) 3361-3380
292 páginas – R$ 38,00
Murilo Alves Pereira
Especial para a CH On-line / PR
19/07/05
Confira a relação de todos os artigos da coletânea:
– Os drusos na guerra do Líbano. Resistência psíquica e afirmação identitária em situação de crise social extrema – Jamil Zugueib Neto
– O jogo do deslocamento entre ideais, ideologias e políticas – Yolanda Gampel
– Os processos de subjetivação na violência: uma aproximação a partir da subjetividade social – Fernando Luis González Rey
– A identidade como processo, entre ligação e desprendimento – Florence Giust-Desprairies
– Identidade e construção do sujeito numa era de incerteza – Ariane P. Ewald
– A singularidade do sujeito e o engajamento coletivo – Kátia Maheirie
– Sobre a violência: Freud, Hannah Arendt e o caso do índio Galdino – Paulo Endo
– Identidade e caráter brasileiro: a arte da dissimulação – Heloisa Guimarães Peixoto Nogueira
– A migração e a produção de patologia no trabalhador da construção civil – Hélia Borges