Quando ouvi essa pergunta há mais de 40 anos, não tinha a menor ideia de quem se tratava nem que, ao procurá-lo, daria início a uma longa e profícua amizade que se encerrou com seu falecimento no dia 20 de junho de 2011.
Naquela época, estava concluindo o meu doutorado na Universidade da Califórnia (Ucla) e participava da reunião da American Chemical Society realizada em Los Angeles, nos Estados Unidos.
Graças a um encontro com um colega de trabalho de Zurique, fiquei sabendo da presença de Otto Gottlieb no evento e aproveitei a oportunidade de encontrar alguém que tinha informações sobre a pesquisa no Brasil, para onde pretendia voltar em poucos meses. Junto com um colega da África do Sul, levei Gottlieb para ver a cidade e acabei conhecendo esse extraordinário personagem.
De volta ao Brasil, já como assessor do Setor de Química do Conselho Nacional de Pesquisas (este era o nome do CNPq à época), pude acompanhar os trabalhos do pesquisador que passava pelo quilômetro 47 da antiga Rio-São Paulo (hoje Seropédica) e por São Paulo, Belo Horizonte e Manaus toda semana, dando cursos e montando grupos de pesquisas.
Horas de voo no currículo
Junto com a sua fama, circulavam também histórias pitorescas a seu respeito, como a sua capacidade de preparar aulas e corrigir provas no avião durante seus deslocamentos e seu expediente de incluir horas de voo no currículo.
Entretanto, só fiquei sabendo quem era de fato Otto Gottlieb quando o entrevistei para a seção Personalidade da revista de Química Industrial. Por trás daquela simpatia e do bom humor, existia uma pessoa com forte determinação para buscar a excelência em tudo que empreendia, investigar a fundo as abordagens aplicadas para a solução de um problema e analisar e questionar os resultados de seus trabalhos científicos.
Essas características, somadas a sua postura intransigente na defesa de questões ligadas à liberdade acadêmica, o levaram a uma inegável liderança em seu meio. Eventuais incompreensões e animosidades entre alguns colegas foram minimizadas pelo seu carisma e dom de simplificar questões por mais complexas que parecessem. Isso lhe garantiu a admiração de seus alunos e dedicação de seus colaboradores.
Essa determinação não era circunscrita ao meio científico. Durante o governo militar, Gottlieb defendeu seus princípios até diante do presidente da República, abandonando a destacada posição que lhe fora oferecida na Universidade de Brasília em uma época em que poucos teriam coragem de agir de forma semelhante.
Quando a nossa Amazônia estava sob pesada pressão desenvolvimentista, ele aplicou seus conhecimentos sobre produtos naturais e estudou como o avanço da civilização (desmatamento, introdução de espécies estranhas ao ecossistema, mudanças nas práticas de populações nativas, por exemplo) afetava os constituintes da flora local – e, consequentemente, a sua fauna. Assim, permitiu que os efeitos de novos projetos de ocupação do solo pudessem ser detectados e analisados.
Essas abordagens abriram um novo campo de estudos em ecologia e propiciaram o estabelecimento de critérios para a introdução e o monitoramento de projetos na região muito antes do tempo em que essas preocupações alcançaram a visibilidade atual.
A componente científica desse trabalho foi objeto de seguidas indicações para o Prêmio Nobel de Química, mas, com a sua saúde debilitada pelo mal de Parkinson, Gottlieb nem sempre pode enfrentar as exigências dos candidatos para que divulgasse os seus trabalhos e, assim, convencesse os seus pares.
Finalmente, cabe também destacar que professor Gottlieb era brasileiro por opção (ele nasceu na Europa, na República Tcheca) e trabalhava em um campo que requer instrumentação sofisticada, que, nem sempre, estava disponível para suas pesquisas.
Mesmo assim, ele resistiu aos muitos convites para trabalhar fora do país e conseguiu estabelecer e manter sua posição como líder mundial em seu campo.
Otto Gottlieb serviu de fonte de inspiração para os atuais pesquisadores brasileiros que trabalham em produtos naturais e mostrou a muitos jovens no Brasil e em outros países que existem problemas locais que são de grande importância para a sociedade.
Mostrou também que esses problemas podem ser estudados sob as condições disponíveis no país e, ainda assim, dar origem a trabalhos de fronteira.
Peter Rudolf Seidl
Escola de Química
Universidade Federal do Rio de Janeiro