Água no deserto vermelho

Marte não é um deserto completamente seco. Pelo contrário – se um dia o homem realmente chegar à superfície do planeta vermelho, poderá explorar de forma relativamente simples um estoque precioso do recurso. É o que mostra um conjunto de artigos publicados em seção especial da revista Science desta semana, que traz resultados dos primeiros trabalhos que analisam dados gerados pela sonda Curiosity sobre o solo de Marte. Um dos trabalhos principais mostra que as camadas superficiais do solo marciano teriam cerca de 2% de água em sua composição. 

Um dos principais trabalhos publicados na Science mostra que as camadas superficiais do solo marciano teriam cerca de 2% de água em sua composição

A Curiosity funciona como um verdadeiro laboratório itinerante ultra-avançado, capaz de recolher e analisar amostras de Marte com equipamentos de última geração. Os artigos publicados ontem (26/09) trazem resultados de investigações realizadas na cratera Gale, local onde a sonda pousou em agosto de 2012, e que se referem aos seus primeiros 100 dias de atividade no planeta vermelho. 

De forma geral, as pesquisas ajudam a compreender melhor a diversidade geológica de Marte e dão pistas sobre o processo de formação e a história do planeta. Mais ainda, fornecem indícios que podem ajudar a descobrir se Marte já foi realmente habitável – e se ainda poderia abrigar compostos orgânicos ou formas de vida.   

Água para o futuro

O estudo que identificou a presença de água no solo marciano foi coordenado por Laurie Leshin, do Instituto Politécnico Rensselaer, dos Estados Unidos. Seu grupo utilizou o Sample Analysis at Mars (SAM), equipamento que analisa a composição química dos gases e compostos voláteis desprendidos por amostras de solo submetidas ao processo de pirólise, um aquecimento na ausência de oxigênio a temperaturas que chegam a mais de 800 ºC. Foram analisadas camadas de solo muito finas, que apresentaram cerca de 2% de água em sua composição.

Rastro da Curiosity
Depois de realizar algumas análises na área da cratera Gale, onde aterrissou, a Curiosity agora ruma para seu destino científico final, o monte Sharp. O objetivo é entender melhor a geologia e a história do planeta, além de buscar por compostos orgânicos ou formas de vida. (imagem: Nasa/ JPL-Caltech)

Pode parecer pouco, já que a proporção é similar à observada em solos desérticos da Terra, mas a notícia foi comemorada – em especial porque a facilidade com que é carregada pelo vento torna essa camada de sedimentos finos muito representativa da superfície do planeta como um todo. “Comprovamos que Marte não é um deserto seco e tem quantidades significativas de água no solo”, comemorou Leshin. “Como essa camada de poeira fina é muito disseminada, o recurso estaria acessível em praticamente qualquer lugar, uma grande notícia para futuros planos de exploração de Marte.” 

Leshin: “Comprovamos que Marte não é um deserto seco e tem quantidades significativas de água no solo”

Uma novidade menos animadora foi a ausência nas amostras de vestígios convincentes da existência de compostos orgânicos, precursores da vida. “Observamos quantidades muito pequenas de algumas moléculas bem simples e comuns na Terra, mas que podem estar associadas à contaminação do equipamento ou a impactos de asteroides em Marte”, lamenta Leshin. No entanto, isso não decreta o fim da busca por vida no planeta, garante ela. “A superfície não seria o melhor alvo para procurar esses compostos, devido à grande exposição à radiação e à oxidação, por isso, a Curiosity usará uma broca para escavar as rochas em busca de moléculas protegidas em seu interior.” 

O estudo também encontrou indícios da presença de percloratos no solo, substância que pode prejudicar a saúde humana. “Outras sondas já haviam encontrado evidências semelhantes próximas aos polos de Marte, mas parece que os percloratos podem estar mais distribuídos pelo planeta do que pensávamos”, avaliou. “Por isso, será preciso monitorar melhor esses compostos e estudar como isso afetaria humanos em contato com o solo marciano, antes de pensar em missões tripuladas para o planeta.”

O passado do planeta vermelho

Também com o intuito de entender a química do solo marciano, pesquisadores de outro grupo, liderado por Pierre-Yves Meslin, do Instituto de Pesquisa Astrofísica e dos Planetas, da França, avaliaram os dados gerados por outro equipamento da Curiosity, o ChemCam, que utiliza lasers para analisar as amostras. Os resultados também evidenciaram a presença de hidrogênio nos materiais finos do solo – o que parece confirmar o grau de hidratação do planeta sugerido por análises anteriores de sondas orbitais e reforça as observações do grupo capitaneado por Leshin. 

Oceano de Marte
Imagens obtidas pela própria Curiosity e por outras sondas em órbita de Marte parecem mostrar que o planeta já teve grandes quantidades de água líquida em sua superfície, alguns bilhões de anos atrás. A esperança dos cientistas é que o jipe-robô ajude a encontrar pistas sobre esse passado geológico e a descobrir se Marte já abrigou vida. (imagem: G. Di Achille)

Com outro equipamento da Curiosity, um espectrômetro, também foi possível estudar a primeira amostra de rocha da superfície de Marte. Batizada como ‘Jake_M’ em homenagem a um membro da equipe da missão morto no ano passado, a rocha revelou ter origem vulcânica e ser de um tipo nunca observado em Marte, com composição semelhante à da mugearita, comum em ilhas terrestres. “Foi um achado surpreendente porque ninguém esperava encontrar esse tipo de rocha em Marte”, avalia o líder do estudo, Edward Stolper, do Instituto de Tecnologia da Califórnia, nos EUA. “A formação da mugearita dá pistas sobre a geologia de Marte e, como pode estar relacionada a ambientes ricos em água, serviria como mais uma evidência da existência desse recurso no planeta.”

Meslin: “Novos estudos permitirão compreender melhor a evolução do clima e do ambiente do planeta, assim como as mudanças em seu ciclo das águas e sua condição de abrigar vida”

Meslin destaca que a composição, a mineralogia e as propriedades físicas do solo são importantes indicadores dos processos naturais que ocorreram em Marte ao longo de suas eras geológicas. “Alguns dados observados nos estudos lembram ambientes da Terra, mas precisamos entender as diferentes dinâmicas de Marte”, acredita. “Novos estudos permitirão compreender melhor a evolução do clima e do ambiente do planeta, assim como as mudanças em seu ciclo das águas e sua condição de abrigar vida.”

Uma vez que os trabalhos utilizaram dados obtidos apenas nos 100 primeiros dias de atividade da sonda em solo marciano, a expectativa dos pesquisadores é anunciar mais novidades em breve. A Curiosity agora ruma em direção em monte Sharp, seu objetivo final, onde será possível estudar camadas de diferentes períodos geológicos. “Aprendemos muito sobre a superfície de Marte, mas no monte Sharp poderemos estudar outros tipos de sedimentos e rochas, além de termos uma janela para a história do planeta”, avalia Meslin. 

Leshin também se mostra esperançosa. “Os resultados evidenciam que todos os equipamentos estão funcionando bem e, no monte Sharp, a Curiosity poderá realizar perfurações no solo em busca de amostras; será a melhor chance de entender melhor o passado ambiental de Marte”, afirma. “Estamos prontos para analisar uma porção de rochas!”

Marcelo Garcia
Ciência Hoje On-line