Dizem que, no Brasil, todo mundo discute futebol. Por que então os antropólogos ficariam de fora? Pois o esporte foi tema de uma mesa-redonda realizada na semana passada na IX Reunião de Antropologia do Mercosul, na Universidade Federal do Paraná, em Curitiba.
Acontece que esportes em geral dizem muito sobre uma sociedade. No caso do Brasil, por exemplo, o futebol é o único fenômeno capaz de transformar completamente o comportamento da população, ainda que em momentos bastante específicos: durante jogos da seleção em copas do mundo.
Foi o que concluiu o antropólogo Édison Gastaldo, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, que há quase 20 anos estuda a relação entre o evento e a sociedade brasileira. “Uma partida de futebol da seleção brasileira na Copa do Mundo é o que se pode chamar de fato social total.”
A expressão ‘fato social total’ foi criada na década de 1920 pelo antropólogo francês Marcel Mauss (1872-1950) para definir um evento em que, de uma só vez, se expressam todos os principais elementos de uma sociedade: poder, economia, política, honra, religião e guerra.
O conceito foi concebido para explicar fenômenos em sociedades primitivas, de pequenos grupos de indivíduos. “Mas, apesar de sermos uma sociedade complexa, com mais de 190 milhões de pessoas, vivemos um fato social total durante um jogo de copa do mundo, esquecendo o restante da realidade nos 90 minutos da partida”, explica o pesquisador.
Nesses períodos, empresas dão folga aos funcionários, e todo mundo veste verde e amarelo e esquece os problemas para acompanhar o futebol – até mesmo brasileiros que em outras épocas rejeitam o rótulo de apaixonados pelo esporte.
Durante a Copa do Mundo de 2010, na África do Sul, uma equipe liderada por Gastaldo estudou o comportamento de torcedores brasileiros na cidade do Rio de Janeiro e, a partir desse trabalho, produziu um vídeo.
O filme mostra como as pessoas agem movidas por impulsos emocionais em certos momentos dos jogos. “Tem gente que se arrepende no dia seguinte e não sabe dizer por que teve determinado comportamento”, diz Gastaldo.
Para os antropólogos que estudam o tema, parte da identificação nacional com o futebol na Copa do Mundo pode ser explicada pelo período dos governos militares, que teriam incentivado esse apelo para se apropriar do sucesso do país em campo.
O uso que o Estado faz de competições esportivas para que a população esqueça problemas sociais não é exclusividade do Brasil. Tornou-se até senso comum dizer que “o futebol é o ópio do povo”. Mas, segundo o sociólogo Pablo Alabarces, da Universidade de Buenos Aires, a ideia de que êxito esportivo se reflete em aprovação política nem sempre é verdadeira.
Copa de 1978
Alabarces estudou em seu doutorado a Copa do Mundo de 1978, na Argentina, e o trabalho deu origem ao livro Fútbol y Pátria – El fútbol y las narrativas de la nación en la Argentina. Na obra, ele lembra como a ditadura do general Jorge Videla, presidente do país à época, transformou o mundial em evento militar. A Argentina foi campeã depois de se classificar para a final com uma polêmica vitória de 6 a 0 sobre o Peru.
Há fortes indícios de que a seleção peruana foi subornada. A Argentina precisava vencer a partida por quatro gols de diferença para superar o Brasil em saldo de gols. Do contrário, disputaria apenas o terceiro lugar.
Veja abaixo os seis da Argentina sobre o Peru em semifinal da Copa de 1978
A comemoração por conta da goleada suspeita levou uma multidão à praça de Maio, em Buenos Aires. A concentração acabou com um protesto de mulheres que queriam informações sobre os filhos que haviam desaparecido por criticar o governo do país.
“A Argentina foi campeã, mas isso não garantiu consenso político. O fato de não haver registros de crítica se deve à censura que dominava a imprensa”, lembra Alabarces. Uma prova da instabilidade política no país é a queda do general Videla pouco depois da conquista do mundial.
A experiência mexicana
O uso político de megaeventos esportivos não ocorre só quando o assunto é futebol. O mexicano José Samuel Martínez López, da Universidade Ibero-americana, mostrou como nos últimos 85 anos os governos do México têm utilizado competições esportivas para demonstração de poder.
Nesse período, foram realizadas três edições de jogos centro-americanos (1926, 1954 e 1990), duas de pan-americanos (1955 e 1975), duas copas do mundo (1970 e 1986) e uma edição de jogos olímpicos (1968), todos na Cidade do México, capital federal.
“De 1926 a 1990 o Partido Revolucionário Institucional (PRI) sempre esteve na presidência, e os governantes se aproveitaram daqueles eventos para projetar o país internacionalmente”, disse López.
No caso do México, como a população não tem expectativa de títulos – como o Brasil e a Argentina têm no futebol –, a realização de competições mundiais é usada para passar a imagem de um país fraterno, aberto a pessoas do mundo inteiro.
Em outubro deste ano o México voltará a sediar os Jogos Pan-Americanos, mas agora governado pelo Partido de Ação Nacional (PAN). É a primeira vez na história do país que uma competição não acontecerá na capital federal, mas em Guadalajara. Como as sedes das principais emissoras de televisão estão na capital, a cobertura dos preparativos tem sido mínima, como se o evento só interessasse à população local.
Daqui a alguns anos o Brasil será sede da Copa do Mundo e dos Jogos Olímpicos. Não será surpresa se os eventos forem usados como instrumentos de manobra política. É bem provável, segundo Édison Gastaldo, que haja negociações escusas, das quais poucos ficarão sabendo. Mas é certo que, se não toda a população, ao menos os antropólogos estarão atentos.
Célio Yano
Ciência Hoje On-line/ PR