Alimento inusitado

Filhotes de cobra-cega se alimentam das camadas mais superficiais da pele da mãe. O período de alimentação dos filhotes dura cerca de um mês e meio, durante o qual a fêmea não se afasta em nenhum momento de sua prole (fotos: Carlos Jared).

Um estudo desenvolvido por uma equipe internacional confirmou o peculiar hábito alimentar de uma espécie brasileira de cobra-cega. Os filhotes desses anfíbios se alimentam da pele da mãe, do momento em que saem do ovo até se tornarem independentes. Esse tipo de alimentação, chamado de dermatofagia, já havia sido encontrado em uma espécie africana semelhante, o que indica que o comportamento é anterior à separação da África e da América do Sul, ou seja, tem mais de 100 milhões de anos.

Esse hábito alimentar foi provavelmente herdado de um ancestral comum das duas espécies, segundo o biólogo Carlos Jared, pesquisador do Instituto Butantan e integrante da equipe. Esse ancestral comum teria habitado o supercontinente Gondwana (que reunia as regiões da Antártida, América do Sul, África e Oceania), há mais de 100 milhões de anos. Os resultados da pesquisa foram publicados recentemente na revista Biology Letters.

As cobras-cegas são anfíbios sem patas adaptados à vida no mundo subterrâneo. Apesar do nome, lembram mais sapos do que cobras. Jared estuda esses animais desde a década de 1980 e foi um dos primeiros a observar o comportamento inusitado desses anfíbios. Ele percebeu que a coloração das fêmeas ficava mais opaca enquanto cuidavam de seus filhotes.

“A princípio, pensei que se tratava da secreção de feromônios de agregação”, afirma. “Apenas depois de análises mais apuradas e conversas com especialistas de outros países percebi que os animais comiam a pele da mãe.”

De acordo com Jared, alimentar-se da própria pele é um comportamento comum entre os anfíbios, mas comer a pele dos progenitores é uma descoberta recente. Os anfíbios em geral apresentam mudas freqüentes. “Alguns deles comem essa muda, pois se trata de uma importante reserva nutritiva”, explica.

Os filhotes dessa espécie de anfíbio já nascem com uma dentição especializada para arrancar pedaços da pele da fêmea. Segundo especialistas, essa seria uma forma primitiva de amamentação.

Desde a década de 1970, sabe-se que, quando o meio não está favorável ao seu nascimento, filhotes de cobras-cegas vivíparas permanecem no útero materno, comendo as secreções do seu revestimento interno. “Mas a dermatofagia, comportamento que se processa na superfície do corpo materno das cobras-cegas ovíparas, só foi observado em 2006”, acrescenta Jared.

Redução de peso
O período de alimentação dos filhotes até que eles se tornem independentes dura cerca de um mês e meio. Durante esse processo, a fêmea sofre uma redução de peso, pois não se afasta de sua prole nem para buscar alimento. Os filhotes de cobra-cega nascem com uma dentição especializada para arrancar pedaços da pele da mãe. “Essa pele da fêmea é rica em lipídios e proteínas, pois os filhotes crescem rapidamente”, afirma Jared.

Além de constatar que a pele serve de alimento, em um tipo primitivo de amamentação, o grupo descobriu ainda que as mães soltam com freqüência pela abertura cloacal um líquido viscoso, que os filhotes sugam avidamente. “Acreditamos que esse líquido possa ser um complemento à alimentação dos filhotes, talvez rico em açúcares”, conta Jared. Sua equipe está analisando a composição do líquido para confirmar a hipótese.

O biólogo afirma que a pele da mãe se regenera a cada três dias, e os filhotes alimentam-se apenas de sua camada mais superficial. “Apenas a epiderme serve de alimento, a derme permanece intacta”, comenta. “O que procuramos entender agora é o que acontece com as glândulas de veneno durante a alimentação. A pele das cobras-cegas é muito venenosa, e os filhotes deveriam estar digerindo essas substâncias.” 

Igor Waltz
Ciência Hoje On-line
31/07/2008