Ameaça fantasma

Desigualdade social, falta de planejamento urbano, destruição de recursos naturais. Além de todos esses problemas, países da América Latina têm de encontrar meios para solucionar outra grave questão, que, embora não pareça, está relacionada com as demais: o impacto humano no ciclo do nitrogênio. O assunto vem à tona na edição desta sexta-feira (12/04) da revista Science, em artigo assinado por 12 pesquisadores de Brasil, Argentina, Bolívia, México e Venezuela.

No texto, os autores explicam que fatores como o crescimento do cultivo de soja, a queima desenfreada de vegetação natural e sistemas inadequados de tratamento de esgoto têm levado a América Latina a experimentar níveis alarmantes de emissão de nitrogênio, na forma de óxido nitroso (N2O), na atmosfera.

Desde a década de 1990, o plantio de soja se expande em território latino-americano, e a região já responde por 40% da produção mundial – acima de qualquer outro bloco continental. Especificamente no caso do Brasil, o uso agrícola de áreas que antes tinham importante papel na fixação de nitrogênio contribui para a liberação da substância no ar.

Estima-se que 150 mil km2 de mata nativa são queimados anualmente na América Latina, transferindo grande quantidade de nitrogênio reativo para a atmosfera, que eventualmente se deposita em ambientes aquáticos e terrestres.

“Em algumas áreas da América Latina, a deposição de nitrogênio reativo com a chuva atinge níveis similares aos de países industrializados”, diz o engenheiro agrônomo Luiz Antonio Martinelli, da Universidade de São Paulo (USP), um dos autores do artigo. “Essa deposição é especialmente elevada na bacia do rio Paraná, em países como Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai.”

Colheita de soja
Colheitadeira em campo de soja. Expansão do plantio do grão na América Latina tem impacto direto no ciclo do nitrogênio. (foto: Igor Spanholi/ Sxc.hu)

O uso de fertilizantes nitrogenados em lavouras, que também promove a emissão de N2O na atmosfera, ainda é menor do que em países europeus, Estados Unidos e China, mas o crescimento ocorre a passos largos.

“Essa tendência pode ser vista como algo bom, pois aumenta a produtividade de lavouras, mas é preciso que esse tipo de produto seja usado de maneira eficiente”, afirma Martinelli. “Na dose errada e no momento errado, o fertilizante se torna um poluente.”

Medidas necessárias

Diferentemente do que ocorre em países desenvolvidos, no cenário latino-americano a precariedade da infraestrutura básica, especialmente na periferia de grandes centros urbanos, contribui para o problema da emissão de N2O.

“Por um lado, o contato da população com esgoto não tratado causa diversas doenças de veiculação hídrica; por outro, provoca o fenômeno da eutrofização [excesso de nutrientes em uma massa de água]”, explica o pesquisador da USP.

“Nitrogênio é como um remédio: é bom na dose e hora certa; do contrário, é prejudicial”

“A entrada de nitrogênio estimula o crescimento de microrganismos que, após um tempo, morrem e são decompostos. Esse processo de decomposição usa como combustível o oxigênio dissolvido na água, que acaba faltando para peixes e outros organismos”, completa. “Nitrogênio é como um remédio: é bom na dose e hora certa; do contrário, é prejudicial.”

Os autores do artigo propõem algumas medidas que poderiam auxiliar no combate à emissão desproporcional de nitrogênio, entre elas o estímulo ao trabalho de pequenos agricultores. Eles sugerem que no campo se deve buscar mais diversidade de culturas, imitando ecossistemas naturais. “Agricultura intensiva só deve ser incentivada em modelos sustentáveis, em que os sistemas de produção e as paisagens vizinhas promovam equilíbrio ambiental.”

Outras ações importantes seriam reduzir o desmatamento e a queima de vegetação natural e aprimorar a estrutura de saneamento básico. “Fácil de falar; difícil de implementar”, admite Martinelli. “Mas acredito que não temos outra saída.”

Célio Yano
Ciência Hoje On-line/ PR