Ameaça invisível ou panacéia universal?


A animação mostra a estrutura tridimensional de um nanotubo de carbono em rotação. Entre todos os materiais conhecidos, os nanotubos de carbono são os que têm maior resistência mecânica. São estruturas mais duras que o diamante e podem ser até cem vezes mais fortes que o aço, com apenas um sexto de sua densidade. Podem conduzir eletricidade e são os melhores condutores de calor que se conhecem (arte: Wikimedia Commons).

Muita gente ainda não se deu conta, mas vivemos hoje uma verdadeira revolução científica. Trata-se da nanotecnologia, que se aventura pelo inexplorado mundo dos átomos. O que muitos também desconhecem é que o tema tem motivado uma ampla e arrebatada discussão na comunidade científica. De um lado alinham-se pesquisadores que superestimam os impactos negativos da nova tecnologia; de outro, os que supervalorizam seus benefícios; entre eles, os que adotam uma posição mais comedida. Para entender a controvérsia, a reportagem da CH On-line foi a campo ouvir essas diferentes vozes e apresenta o resultado dessa investigação a seus leitores.

A nanotecnologia, vista por alguns como uma nova revolução industrial, permite manipular estruturas inimaginavelmente pequenas, possibilitando, entre outras coisas, a criação de novas substâncias, materiais ou produtos que até pouco tempo atrás só seriam concebíveis na imaginação de cientistas muito audaciosos. Tecidos que nunca mancham, colas superpoderosas, vidros inquebráveis, materiais ultra-resistentes… São apenas alguns exemplos de coisas que, num futuro próximo, poderão estar nas prateleiras dos supermercados.

Méritos à nanociência. Mas o trabalho com estruturas tão pequenas – o prefixo nano refere-se à bilionésima parte do metro – envolve riscos. Embora anuncie um novo horizonte para o desenvolvimento científico, a nanotecnologia pode, segundo alguns, significar uma ameaça ambiental sem precedentes, cujas dimensões ainda desconhecemos.

Visando conscientizar a população e esclarecê-la quanto a essas potenciais ameaças, pesquisadores da Rede de Pesquisa em Nanotecnologia, Sociedade e Meio Ambiente (Renanosoma) estão promovendo, ao longo deste ano, debates sobre nanociência em várias capitais brasileiras. O objetivo do projeto é promover uma ampla discussão sobre as implicações decorrentes desse novo saber, mostrando para a sociedade que as pesquisas em nanotecnologia podem ser motivo de preocupações.

“A preocupação é legítima”, garante o sociólogo Paulo Martins, pesquisador da Renanosoma e um dos autores do livro Revolução invisível – desenvolvimento recente da nanotecnologia no Brasil (São Paulo, Xamã, 2007). Segundo Martins, do Instituto de Pesquisas Tecnológicas de São Paulo, o primeiro problema que enfrentamos são os elevados investimentos em pesquisas cujos riscos mal conhecemos.

“Estamos em uma verdadeira corrida rumo ao desenvolvimento de novos nanoprodutos, uma disputa acompanhada de pouco ou nenhum interesse sobre a toxicidade desses materiais.” Segundo ele, as pesquisas seguem a todo vapor, embora pouco saibamos sobre a ação das nanopartículas no organismo humano e no meio ambiente.

Riscos potenciais

A foto mostra o grafite feito por um grupo contrário à pesquisa com nanoestruturas nas ruínas de uma antiga fortaleza em Grenoble, na França. A manifestação foi feita em protesto ao projeto de instalação de um laboratório de nanotecnologia naquela cidade (foto: David Monniaux).

De acordo com o químico Daniel Alves, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), todo o cuidado é pouco. Há muitas constatações, resultados de pesquisas nas mais diversas áreas, que alertam para o fato de que alguns nanomateriais podem ser danosos ao homem.

“Alguns tecidos desenvolveram tumores após submetidos à ação de nanopartículas”, exemplifica. Existem vários grupos de pesquisa em todo o mundo investigando esses possíveis perigos, e boa parte dos resultados obtidos está registrada em um estudo feito recentemente por Alves que aborda métodos seguros para se trabalhar com nanotubos de carbono.

Em ambientes controlados, como laboratórios com equipamentos de segurança e sistemas de ventilação adequados, os riscos para quem trabalha com nanotecnologia são minimizados. Mas fora desses locais, para onde as nanopartículas cedo ou tarde escapam, a situação é mais delicada. Essas microestruturas têm um tempo de vida longo no meio ambiente, podendo ser rapidamente absorvidas por organismos e retornar ao homem pela cadeia alimentar.

“Uma vez inaladas ou em contato com a pele, tais partículas podem chegar a qualquer órgão de nosso corpo”, explica o químico. Ele diz que, de acordo com a evolução darwiniana, um ser vivo só pode desenvolver resistência a uma ameaça potencial depois de ter sido exposto a ela continuamente. “No caso da nanotecnologia, no entanto, ainda não criamos essa defesa.”

Priscyla Marcato, doutoranda em nanobiotecnologia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), aponta outros problemas vinculados à pesquisa em nanociência. “Algumas nanopartículas podem ser mutagênicas, além de poderem alterar a população microbiana das águas e florestas”, afirma. Esta é a conclusão de um trabalho do toxicologista alemão Günter Oberdörster, da Universidade de Rochester (EUA), publicado em julho de 2005 na revista Environmental Health Perspectives.

Marcato ressalta que, apesar de tantos possíveis riscos, não devemos esquecer que a nanotecnologia tem muitos pontos positivos. “Nanopartículas de prata, por exemplo, podem ser utilizadas para minimizar infecções hospitalares. Mas seu uso deve ser controlado por órgãos de fiscalização responsáveis, para evitar impactos negativos sobre o meio ambiente.” 

Vozes dissonantes  

A foto mostra partículas ocas de fosfato de alumínio que compõem um corante branco desenvolvido na Unicamp a partir de nanoestruturas. O projeto é uma das aplicações da nanociência com benefícios para a sociedade e o meio ambiente, pois o produto da Unicamp permitirá substituir o único pigmento branco disponível no mercado, o dióxido de titânio, cuja produção pode trazer sérios problemas ambientais (foto: reprodução).

Para a comunidade científica, não há nada de novo na acalorada discussão referente aos riscos e benefícios da nanotecnologia. Afinal, a história da ciência moderna sempre esteve vinculada a essa dualidade, presente no desenvolvimento de qualquer nova técnica.

 

Noela Invernizzi, doutora em política científica pela Unicamp, com pós-doutorado na Universidade de Colúmbia (EUA), questiona um ponto em particular. Na sua opinião, o que os cientistas normalmente propõem ao grande público são meras promessas. “São poucos os pesquisadores que têm um discurso mais equilibrado, no sentido de admitir a presença de certos riscos inerentes ao desenvolvimento de seu trabalho”, diz. O físico Marcos Pimenta, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), é um deles.

 

Coordenador de uma rede de pesquisa sobre nanotubos de carbono, Pimenta afirma que, paralelamente ao estudo de um material, devemos estudar também seus impactos sobre a sociedade e o meio ambiente. “Cabe aos agentes governamentais fomentar pesquisas sobre esse tipo de risco”, diz o físico. Que procedimentos devemos adotar e que cuidados devemos ter? Como operacionalizar o descarte desses novos materiais? Para o pesquisador, são perguntas que devem ser respondidas, visando garantir a segurança tanto do pesquisador quanto da população.

 

“Mas a ciência não pára”, diz Pimenta. “O cientista é movido pela curiosidade e, quando pesquisamos, estamos explorando o desconhecido.” No que se refere à nanotecnologia, é preciso levar em conta que não há comprovação de que esses novos materiais sejam mais nocivos do que outros que já existem. Para ilustrar, o físico da UFMG cita o exemplo dos leitores de CD-Rom, que levam arsênio em sua composição. “Sabemos que esse elemento é venenoso, mas nem por isso proibimos seu uso na indústria de computadores. Basta termos cuidado ao trabalhar com ele.”

 

Primeiro estudam-se os materiais, em seguida os perigos inerentes a eles. “Inverter esse caminho talvez não seja tão praticável quanto se propõe”, pondera Pimenta. Muitas vezes as descobertas científicas são mais rápidas do que o conhecimento sobre seus potenciais riscos. Só após anos, ou mesmo décadas, acabamos nos dando conta do perigo que certos materiais representam. “Infelizmente, em geral é assim que as coisas acontecem”, afirma.

 

O químico da Unicamp Fernando Galembeck, outro importante pesquisador na área de nanotecnologia, afirma que “desenvolver produtos sem avaliar propriedades ecotoxicológicas e impactos socioambientais é um erro cabal”. Ele acrescenta ainda que é saudável discutir as decisões sobre os rumos da ciência em todas as esferas da sociedade. Mas com ressalvas: “Passarei a ser radicalmente contra isso no momento em que o Brasil tiver uma população majoritariamente ‘evangélico-crente’, dominada pelo fundamentalismo dito cristão ou por qualquer outro fundamentalismo”.

 

Indagado sobre os possíveis impactos socioambientais dos nanoprodutos, Galembeck opina: “Há riscos sim, mas há também muito exagero e ignorância”. Para ele, as pesquisas sobre propriedades de nanoestruturas ainda desconhecidas não devem ser sustadas apenas por não sabermos no que elas podem resultar. E propõe um desafio: “Se for assim, sugiro que não usemos mais nenhuma gota de água (onde também encontramos nanoestruturas) para finalidade alguma, até que a tal regulamentação que alguns sociólogos buscam seja definitivamente aprovada”.

 

Da ilusão democrática às implicações sociais

 

Segundo Noela Invernizzi, as tecnologias de ponta que surpreenderam a humanidade nas últimas décadas foram marcadas por um desenvolvimento bastante acelerado – quase sempre com um escasso período de experimentação. “Muitas dessas descobertas ganham o mercado com uma velocidade assustadora, em meio a controvérsias que supervalorizam seus benefícios e ignoram os riscos”, comenta a pesquisadora. Foi o que aconteceu com os transgênicos e agora se repete com a nanotecnologia.

 

Para Invernizzi, que também faz parte da Rede Latinoamericana de Nanotecnología y Sociedad (Relans), o primeiro passo para nos conscientizarmos da seriedade desse tema é a discussão pública. Paulo Martins concorda: “Todos devem participar do processo que definirá os rumos da nossa produção científica em nanotecnologia – inclusive o público não-especializado. Primeiro porque é ele que financia as pesquisas; segundo, porque ele será diretamente afetado por seus resultados”.

 

Na opinião de Invernizzi, a busca inconseqüente por competitividade a qualquer custo tem-se mostrado uma alternativa ingênua – uma fórmula questionável para um país com tantas desigualdades. “Essa linearidade de pensamento é uma lógica que nunca funcionou nem vai funcionar.” Para a pesquisadora, deveríamos direcionar nossas tecnologias para suprir nossas próprias necessidades, que são diferentes daquelas dos países desenvolvidos.

 

“Precisamos desenvolver tecnologias de ponta, mas não orientadas somente para mercados que possam comprá-la”, propõe Invernizzi. A população excluída poderá se beneficiar dessas novas descobertas? “Não”, enfatiza a pesquisadora. “Ao contrário, ela ficará cada vez mais excluída. Nas últimas décadas surgiram tecnologias poderosas, porém as desigualdades sociais cresceram de forma assustadora. Ou seja, há algum nexo errado nisso tudo”, denuncia. 

Henrique Kugler
Especial para a CH On-line / PR
29/08/2008