Aparências que enganam

Os primeiros humanos a chegar à América se pareciam com os africanos modernos. Mas os povos a quem chamamos de nativos americanos se assemelham mais aos atuais asiáticos. Essa simples constatação gerou as mais diversas teorias para explicar a povoação do Novo Mundo. Agora, a descoberta de um esqueleto de 12 mil anos em uma caverna submersa na península de Yucatán, no México, traz novos dados para a discussão, favorecendo a ideia de que, apesar das diferenças, os ameríndios descendem dos primeiros habitantes do continente.

O esqueleto tem todas as características dos paleoamericanos. Mas uma análise genética revelou que ele compartilha ancestralidade com os ameríndios atuais

A maior parte da comunidade científica defende que os primeiros a pisar na América, os paleoamericanos, vieram da Sibéria, passando pela Beríngia – faixa de terra que na última era do gelo unia Ocidente e Oriente – entre 26 mil e 18 mil anos atrás. Os achados arqueológicos mostram que esses humanos tinham o crânio pequeno, alongado e projetado para frente, semelhante ao dos africanos modernos e diferente dos crânios ameríndios. Essa observação levou muitos arqueólogos a supor que a América teria sido povoada por duas linhagens distintas, uma de paleoamericanos e outra de ameríndios.

O esqueleto encontrado na caverna mexicana Hoyo Negro, pertencente a uma jovem adolescente apelidada pelos arqueólogos de Naia, tem todas as características dos paleoamericanos. Mas uma análise genética feita a partir do dente siso da caveira revelou que ela compartilha ancestralidade com os ameríndios atuais. Naia possui o DNA mitocondrial – passado apenas de mãe para filhos – do mesmo tipo encontrado hoje em populações indígenas americanas, principalmente do Chile e Argentina.

Assista a um vídeo da caverna onde Naia foi encontrada

De acordo com os pesquisadores, esse tipo específico de DNA mitocondrial, o D1, teve origem na Sibéria. Sua identificação em um paleoamericano reforça a tese de que os primeiros habitantes do continente compartilham uma linhagem com os ameríndios.

“Já sabíamos que os nativos americanos modernos tinham essa conexão genética com os povos antigos da Sibéria, pois cerca de 10% dos povos indígenas americanos possuem o haplogrupo D1; mas não tínhamos ainda encontrado esse tipo específico em um esqueleto paleoamericano tão bem preservado”, explicou à CH On-line a geneticista Deborah Bolnick, pesquisadora da Universidade do Texas e uma das autoras do estudo, publicado na Science desta semana. “É a primeira vez que mostramos que um paleomericano com ancestralidade da Sibéria está ligado aos nativos americanos.”

Segundo o principal autor do estudo, o arqueólogo James Chatters, da empresa Applied Paleoscience, a grande diferença na aparência dos indígenas atuais e dos paleoamericanos se explicaria por mudanças evolutivas. Eles teriam sofrido pressão da seleção natural ao longo dos anos e se adaptado às condições da nova terra.

“Mudanças na aparência geral de um povo podem ocorrer em significativamente pouco tempo”, diz. “Temos evidências que mostram grandes transformações nas características físicas da população americana nos últimos milênios. Não entendemos ainda as vantagens evolutivas por trás delas, mas vemos, por exemplo, que a população tem ficado mais afeminada e com traços infantis.”
 

Outras possibilidades

Apesar de reforçar a ligação entre paleoamericanos e ameríndios, o estudo do esqueleto de Naia não é suficiente para descartar outras teorias sobre o povoamento da América e a ancestralidade dos primeiros habitantes.

Chatters: “Nossas descobertas não nos ajudam a responder completamente as perguntas sobre a migração dos humanos para as Américas”

“Nossas descobertas não nos ajudam a responder completamente as perguntas sobre a migração dos humanos para as Américas”, admite Chatters. “Talvez tenham ocorrido múltiplas migrações de diferentes povos até o Novo Mundo. Não podemos dizer que houve só uma migração da Beríngia, mas sim que a Beríngia é uma das fontes importantes da migração.”

A ideia das múltiplas migrações para a América é defendida por muitos cientistas, entre eles o arqueólogo e bioantropólogo Walter Neves, da Universidade de São Paulo (USP). Neves é o responsável pelo estudo de Luzia, uma das ossadas paleoamericanas mais antigas, com cerca de 12 mil anos, encontrada na década de 1970 em Lagoa Santa (MG).

O arqueólogo acredita que duas linhagens distintas de humanos deixaram a Sibéria em direção à América no final do Pleistoceno: a primeira com morfologia craniana paleoamericana e a segunda com morfologia craniana ameríndia.

Segundo o pesquisador, a ancestralidade materna comum a ameríndios e paleoamericanos observada no estudo do esqueleto de Naia poderia se explicar pela miscigenação entre os dois grupos e não necessariamente por fazerem parte de uma mesma linhagem.

Dente de Naia
O DNA mitocondrial usado na análise de ancestralidade foi extraído de um dente da caveira de Naia. (foto: James Chatters)

“O DNA mitocondrial dá muito pouca informação sobre a história de uma população”, observa Neves. “Mesmo que o DNA mitocondrial dos paleoamericanos esteja presente nos nativos americanos atuais, não há razão para ignorar as diferenças morfológicas entre os dois grupos.”

O pesquisador critica ainda a ideia de que as diferenças morfológicas tenham tido origem na pressão evolutiva, pois fósseis encontrados na Ásia também mostram grupos de humanos com características físicas semelhantes às dos ameríndios.

Neves: “Mesmo que o DNA mitocondrial dos paleoamericanos esteja presente nos nativos americanos atuais, não há razão para ignorar as diferenças morfológicas entre os dois grupos”

“Se essa fosse a razão, teríamos que aceitar que essa pressão evolutiva atuou da mesma maneira em dois locais totalmente diferentes, a Ásia e a América, o que é muito improvável”, afirma. “Em evolução, temos que optar pelo modelo mais econômico, que seria supor que a diferenciação entre as duas populações ocorreu na Ásia, antes da migração para a América.”

Essas questões em aberto poderão ser esclarecidas com a análise do genoma completo de Naia, que vai prover mais informações sobre sua ancestralidade. Chatters avisa que já está trabalhando nisso.

“Embora o material genético do esqueleto esteja bem danificado, devido ao longo tempo que passou debaixo da água, estamos usando as técnicas mais avançadas para conseguir o genoma”, diz. “Naia é um dos poucos esqueletos encontrados na América com mais de 10 mil anos e seu genoma completo pode nos trazer muitas surpresas.”

Sofia Moutinho
Ciência Hoje On-line