Apatia? Dopamina!

Quem nunca passou por momentos nos quais a vontade de fazer algo simplesmente desaparece? Uma vez ou outra, tudo bem. No entanto, quando essa falta de motivação é generalizada e persistente, deve-se considerar um quadro de apatia – estado de passividade associado à falta de interesse, preocupação ou entusiasmo.

Este era o caso de KD após sofrer um acidente vascular cerebral (AVC). Ao examinar o paciente – um homem de 41 anos –, um grupo internacional de pesquisadores chegou à conclusão de que as lesões cerebrais decorrentes do derrame o levaram a um quadro de insensibilidade à recompensa associado à apatia.

A boa notícia é que eles conseguiram revertê-lo pela ação da dopamina – neurotransmissor produzido no cérebro que, entre outras funções, está envolvido no controle motor, no sistema de recompensa e na motivação.

Mas o que aconteceu exatamente a KD? Antes um homem extrovertido, ele se tornou menos espontâneo e mais reservado. Sua nova atitude o fez perder o emprego (e o seguro desemprego!) e ele já não se interessava mais em sair com os amigos. Sua pontuação no Inventário de Apatia, que serve para avaliar a iniciativa, o interesse e o estado emocional do paciente, o classificou patologicamente para os dois primeiros itens.

Apesar de o derrame não ter deixado sequelas aparentes em KD, o acidente danificou regiões do seu cérebro que compõem os núcleos da base – o globo pálido interno foi o mais prejudicado – e interrompeu algumas de suas conexões com regiões do córtex pré-frontal –, no caso, o córtex orbitofrontal e o ventromedial. 

Globo pálido
Na imagem, observa-se a localização do globo pálido, uma das estruturas que compõem os núcleos da base do cérebro. As lesões de KD atingiram principalmente o segmento interno dessa estrutura. (imagem: Life Science Databases/ CC BY-SA 2.1)

Sabendo que essas regiões, entre outras coisas, participam do processo de tomada de decisão e da sensibilidade à recompensa, os cientistas realizaram dois experimentos para avaliar a tomada de decisão baseada na recompensa em KD. Além dele, homens da mesma faixa etária e que não apresentavam lesões cerebrais formaram o grupo controle, ou seja, participaram dos testes para servir de referência.

Testando…

No primeiro teste, o participante tinha que olhar fixamente para um ponto de luz vermelha que após 1.000 milésimos de segundo (ms) trocava de cor: ficava amarelo e depois verde. O tempo de duração da luz amarela variava e a cor verde era o sinal para que ele deslocasse o olhar para outro ponto do painel. Quanto mais rápida fosse a resposta, maior era a recompensa (em dinheiro) recebida. No entanto, caso o movimento fosse realizado antes da luz verde, o participante era penalizado e perdia dinheiro.

Um detalhe importante: o cérebro planeja o movimento, mas a sua execução só acontece (em média) 200 ms depois. Isso significa que o participante pode planejar deslocar o olhar ainda durante a luz amarela, mas realizar o movimento apenas durante a luz verde. Os pesquisadores queriam observar se KD planejava o movimento antecipadamente, buscando uma recompensa maior, mas correndo o risco de errar – lembrando que a duração da luz amarela variava – ou se ele era mais cauteloso e aguardava a luz verde.

No segundo experimento o participante fixava o olhar por 1.000 ms em um ponto central e depois deveria direcionar o olhar para um alvo à esquerda ou à direita, dependendo de qual acendia. No entanto, apenas um dos lados oferecia recompensa.

Ao contrário do grupo controle, KD não apresentou sensibilidade à recompensa

“Estudos anteriores com humanos e macacos mostram que a velocidade de resposta ao lado que oferece recompensa é maior do que ao lado que nada oferece. A diferença é de apenas alguns milissegundos, mas isso mostra que o cérebro é naturalmente sensível à recompensa”, explica o neurocientista Masud Husain, da University College de Londres (UCL), um dos autores da pesquisa. Diferentemente do primeiro, nesse teste, a resposta à recompensa é quase automática, subconsciente.

Ao contrário do grupo controle, KD não apresentou sensibilidade à recompensa. Ou seja, no primeiro experimento ele não planejava o movimento antecipadamente – preferia esperar pelo sinal verde a obter uma recompensa maior – e, no segundo, as respostas eram dadas com quase a mesma velocidade para os dois lados – independentemente da gratificação.

A solução?

Para testar a hipótese de que a dopamina poderia reverter a insensibilidade à recompensa e a apatia, os pesquisadores medicaram KD com levodopa, uma substância que se transforma em dopamina no cérebro.

Não satisfeitos com os resultados relacionados à apatia, eles interromperam o tratamento por quatro semanas e passaram a utilizar o ropinirole, que age diretamente sobre os receptores da dopamina nos neurônios, ativando-os no lugar do neurotransmissor.

O desempenho de KD melhorou após ambos os tratamentos. Assim como os participantes saudáveis, ele passou a antecipar as respostas no primeiro teste e, no segundo, a reagir com maior velocidade ao lado que oferecia recompensa. Os resultados alcançados após o tratamento com ropirinole foram melhores do que os com levopoda: ele arriscou mais no primeiro teste e a velocidade geral de resposta aumentou no segundo.

Portanto, a dopamina agiu no restabelecimento da sensibilidade à recompensa e KD passou a fazer esforço para obtê-la.

A dopamina agiu no restabelecimento da sensibilidade à recompensa e KD passou a fazer esforço para obtê-la

O ropinirole também provocou mudanças comportamentais. De acordo com o estudo, KD se tornou mais espontâneo nas conversas, reportou melhores interações sociais e passou a ter mais interesse nos eventos ao seu redor. A sua pontuação no Inventário de Apatia melhorou e foi considerada normal.

Para os pesquisadores, esses resultados mostram que há uma relação entre os núcleos da base, a apatia e a insensibilidade à recompensa e que a dopamina pode ser utilizada na reversão desses sintomas.

“Nós mostramos que, neste paciente, a apatia pode ser revertida com o uso da dopamina, mas a questão que isso levanta é se ela pode ser modulada em pacientes que não têm dano cerebral focal [caso de KD], como por exemplo, nas condições neurodegenerativas”, diz Husain. “Curiosamente, existem evidências de que na doença de Parkinson a apatia ocorre com mais frequência nos pacientes que não têm uma terapia dopaminérgica suficiente”, ressalta.

Idosa
O estudo dos mecanismos relacionados à apatia em pessoas com doenças neurodegenerativas é mais difícil devido às grandes alterações cerebrais. O dano cerebral sofrido por KD foi focal, ou seja, restrito a uma parte específica do cérebro. (foto: Ginny Austin/ Sxc.hu)

Husain diz que o grupo quer estender essas ideias para outras condições neurológicas associadas à apatia. “No futuro, talvez seja possível entender por que uma pessoa saudável pode apresentar apatia em seus comportamentos diários e até mesmo tratá-la, ainda que estejamos a um longo caminho disso e que existam implicações éticas”, conjectura.


Joyce Santos
Ciência Hoje On-line