Armadilha malcheirosa

Os decoradores têm sempre propostas criativas para dar personalidade à casa de seus clientes — como usar texturas ou cores nas paredes. Mas nenhum desses artifícios se iguala à inusitada estratégia usada pelas corujas da espécie Athene cunicularia para ’decorar’ seu lar: essas aves espalham esterco no ambiente em torno de seu ninho.

Coruja Athene cunicularia nas imediações de seu ninho
’decorado’ com fezes de mamíferos (foto: D. Levey)

Não se trata, evidentemente, de um enfeite: os excrementos funcionam como armadilha para atrair besouros-do-esterco da espécie Phanaeus igneus — o alimento predileto dessas corujas. O uso das armadilhas foi comprovado pela equipe do zoólogo americano Douglas Levey, da Universidade da Flórida, e relatado em 2 de setembro na revista Nature .

Segundo Levey, exemplos convincentes de aves que utilizam esse tipo de estratégia são raros e difíceis de se avaliar. No entanto, as corujas A. cunicularia estão de fato coletando deliberadamente fezes de mamíferos como isca para obter o jantar.

“As corujas seguram o esterco com as suas garras, levam para dentro de seus ninhos e espalham ao redor deles”, conta Levey à CH On-line . “Elas recolhem excrementos secos ou úmidos, não frescos, de cavalos e vacas que vivem próximos a seus esconderijos.” Segundo o zoólogo, elas parecem ter uma especial predileção por fezes de mamíferos de grande porte e herbívoros.

Antes de testar a eficiência da estratégia das corujas, a equipe de Levey considerou a possibilidade de esse recurso servir para camuflar o cheiro de seus ninhos de possíveis predadores. “Os esconderijos dessas aves são acessíveis a uma enorme variedade de animais terrestres e podem ser facilmente tomados”, justifica o zoólogo.

Para testar essa hipótese, os pesquisadores criaram 50 abrigos idênticos aos dessas corujas, com uma distância de 50 metros um do outro, e colocaram 5 ovos de codorna em cada um deles. Cada ninho recebeu esterco de vaca e foi avaliado de dois em dois dias durante três semanas e meia (período típico de incubação das corujas).

Somente um esconderijo não foi encontrado por predadores, e não houve diferença significativa em relação ao tempo de destruição de abrigos com ou sem esterco. “Comprovamos com isso que o excremento não disfarça o cheiro de ovos”, conta Levey. “Mas ele poderia ser eficiente para mascarar o odor dos filhotes, o que não testamos por razões éticas.”

A captura de presas foi a hipótese que sobrou para explicar o comportamento das corujas. Para testá-la, os pesquisadores removeram o esterco da entrada de esconderijos de duas populações dessas aves. Em torno dos ninhos de metade das corujas, foram espalhadas fezes de vaca na quantidade habitualmente encontrada; o lar do restante das aves não recebeu qualquer excremento. Após quatro dias, a experiência foi repetida, com inversão do grupo de corujas cujo ninho foi contemplado com o esterco

“Verificamos que, na presença de excrementos em torno dos esconderijos, as corujas consomem dez vezes mais besouros da espécie P. igneus e um número de espécies de besouro seis vezes maior do que quando não há fezes nos ninhos.” O besouro P. igneus corresponde a 65% de todo o alimento que essas aves consomem.

“Muitos animais utilizam ferramentas como migalhas de pão, penas e insetos para atrair suas presas”, considera Levey. “Mas nenhum deles teve tanto sucesso comprovado na captura quando essas corujas.”

Renata Moehlecke
Ciência Hoje On-line
07/09/04