As precursoras de Brasília

 

Trinta anos antes do concurso para a construção de Brasília, lançado em 1956 pelo presidente Juscelino Kubitscheck, já havia projetos arquitetônicos e urbanísticos para o sítio do Planalto Central. Esses projetos foram resgatados pelo pesquisador Jeferson Tavares em seu mestrado na Escola de Engenharia de São Carlos, vinculada à Universidade de São Paulo (USP).

O plano urbanístico feito em 1929 pelo historiador Theodoro Figueira
de Almeida já sugeria ‘Brasília’ como nome da futura capital federal.
Clique aqui para ampliar a imagem e saber detalhes sobre o projeto.

Ao longo de seis anos, o pesquisador identificou e analisou mais de três dezenas de planos urbanísticos propostos para região desde 1927 — e não só os que concorreram para o concurso nacional de escolha do projeto para a nova capital federal. “Meu trabalho é uma tentativa de registrar todos os projetos urbanísticos de Brasília que nunca foram catalogados”, diz o arquiteto e urbanista.

Tavares reuniu mais de 300 imagens dos projetos após percorrer 78 arquivos no Distrito Federal, Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo. Os planos resgatados, caracterizados pela criatividade dos urbanistas de meio século atrás, foram divididos em dois grupos: as propostas feitas antes de 1956 e as planejadas para o concurso.

O primeiro grupo, constituído por cinco projetos elaborados entre as décadas de 1920 e 1940, é marcado pela diversidade de formulações e interpretações, resultante da heterogeneidade de profissionais e objetivos envolvidos em cada proposta. “Esses planos representam os anseios urbanísticos de cada período e mostram a construção da cultura urbanística nacional”, esclarece Tavares.

Esses planos nasceram de iniciativas particulares sem vínculo definitivo com a transferência da capital federal para o interior do país, pois ainda não havia uma iniciativa oficial para promover a mudança. Essa idéia surgiu entre os séculos 18 e 19 a partir de discussões políticas e estratégico-militares. “As constituições de 1891, 1934, 1937 e 1946 já legitimavam o Planalto Central como o local a receber a nova capital”, comenta o arquiteto.
 

Da esq. para a dir.: planos de 1927, 1936 (de Carmem Portinho) e 1948 (de Jales Machado) para a capital.

 

“Muitos políticos defendiam a transferência para a proteção do interior do território nacional, até então desabitado, e para estabelecer o equilíbrio do desenvolvimento por todo o país, e não só no litoral, como vinha acontecendo”, afirma. “No governo JK houve apenas a definição oficial do Planalto Central, ao final de um longo e contraditório processo.”

O urbanista ressalta que os projetos se enquadravam nos ideais urbanísticos vigentes naquela época, mas precisavam de maior detalhamento para serem colocados em prática. “Talvez o plano mais avançado dos cinco, o da engenheira Carmem Portinho, pudesse ser desenvolvido por trazer elementos visuais que indicavam sua viabilidade.”

Tavares considera a descoberta de planos anteriores ao concurso fundamental para entender a construção de um pensamento urbanístico nacional próprio de cada época. “O trabalho oferece uma visão de conjunto de cerca de 30 anos de proposições para Brasília ao invés de se restringir a apenas dois”, diz. “A reunião dessas propostas é uma contribuição à memória da cidade e aos futuros pesquisadores e interessados no assunto.”

 

Três planos para a nova capital :

Parte de um registro de imóveis, o projeto acima, de 1927, atende a interesses imobiliários que aproveitavam a valorização das terras do Planalto Central. Em 1922 o presidente da República, Epitácio Pessoa, em ato simbólico pela comemoração dos 100 anos da independência do país, definiu a colocação de uma pedra fundamental para a nova capital na cidade de Planaltina – que já existia antes de Brasília e se tornaria cidade-satélite após a fundação da capital. O fato valorizou as terras ao redor da cidade e provocou a especulação e o interesse dos seus proprietários.

Não se conhece o autor do projeto nem o dono das terras, mas supõe-se que o plano de 1927 seja decorrente dessa valorização, pois foi proposto para a Fazenda do Bananal, área muito próxima ao local onde foi instalada a pedra fundamental.

O plano é simples, à imagem do pensamento urbanístico vigente, e dialoga com os traçados de capitais estrangeiras já projetadas (como a cidade de Washington). Com traçado geométrico, o projeto é composto por duas malhas, uma ortogonal e uma diagonal, cortadas por uma grande circunferência que encerra a parte central do plano. Dentro dessas figuras encaixam-se as áreas de lazer e os lotes. Nos cruzamentos dos grandes eixos são definidos monumentos, praças e áreas de importância cívica. No centro da circunferência está localizada a estação ferroviária.

A engenheira Carmem Portinho, em 1936, desenvolveu o terceiro projeto para a nova capital, reproduzido acima. Chamado de “Cidade dos tempos modernos”, o plano é o primeiro proposto por um profissional vinculado ao urbanismo.

Resultado de uma tese acadêmica da autora, o plano incorpora os preceitos do arquiteto franco-suíço Le Corbusier e define uma cidade para 2 milhões de habitantes. Mais que um projeto de capital federal, Portinho criou um modelo de cidade que poderia ser repetido infinitamente como forma de absorver a demanda urbana que logo se tornaria crescente e hegemônica.

O traçado da cidade propunha viadutos, altos edifícios administrativos e comerciais, cruzamentos eficientes para automóveis e largas pistas como soluções para problemas urbanos, idéias repetidas em projetos participantes do concurso vencido por Lúcio Costa cerca de 20 anos mais tarde. O plano previa ainda, no centro, uma plataforma ferroviária e aeroviária para organizar a futura circulação de veículos e pedestres. Os lotes para os edifícios residenciais tinham uma nova dimensão (700 por 200 metros) e revolucionavam a forma de divisão da cidade.

A quarta proposta para a nova capital foi feita em 1948 pelo deputado federal Jales Machado. Seu plano provava, a partir de uma metodologia simples, a viabilidade da construção de rodovias que ligassem todo país a capital federal, como mostra o mapa acima. Essa idéia foi concretizada parcialmente pelo governo de JK.

A proposta de Jales Machado surge em meio a discussões políticas que pretendiam levar a nova capital federal para Minas Gerais ou o interior do Rio de Janeiro. O plano defendia o Planalto Central como sítio mais adequado para a capital. Diante dessa hipótese, Machado estabeleceu um plano de diretrizes e metodologias que incluía capital público e privado para a construção da cidade. Esse sistema possibilitaria a transferência em poucos anos.

Machado não definiu nenhum desenho para a cidade, mas criou um extenso e completo plano viário de circulação que integraria todo o país, situação que possibilitaria a transferência da capital e evitaria seu isolamento. Seu plano de circulação contava com vias perimetrais e radiais. No centro do mapa, a capital federal está representada por um coração, como se fosse o centro responsável pela propagação do desenvolvimento para todo o país.

Jeferson Tavares analisa ainda um quinto projeto para a nova capital em seu estudo. Trata-se do plano de João Augusto de Mattos Pimenta, do qual não há nenhum registro visual: o plano foi identificado como existente apenas pelo depoimento de seu neto, José d’Ávila Pompéia.

 

Renata Moehlecke
Ciência Hoje On-line
01/07/04