Barreira climática

Apesar do cenário alarmista de aquecimento global, podemos ficar tranquilos: não haverá mudanças climáticas abruptas na Terra nos próximos 20 mil anos, enquanto estiver aberto o estreito de Bering, faixa de água que separa a América do Norte da Rússia. Pelo menos é o que mostra uma série de simulações de computador conduzidas por uma equipe internacional de pesquisadores.

Os cientistas partiram da história do clima para simular o que acontece com a temperatura mundial quando o estreito de Bering está aberto e quando está fechado. Hoje ele está aberto, mas já esteve fechado durante as eras glaciais, períodos em que as águas se concentraram em geleiras e o nível do oceano baixou, deixando à mostra uma faixa de terra de cerca de 80 km entre os continentes. 

No final da última era glacial, entre 100 mil e 17 mil anos atrás, o estreito foi de extrema importância para a história humana. Acredita-se que foi no final desse período que os primeiros humanos chegaram às Américas, cruzando a ‘ponte’ que se abriu no lugar do mar.  

As variações climáticas ocorridas entre 80 mil e 11 mil anos atrás teriam origem no efeito que o fechamento do estreito de Bering provoca na dinâmica do oceano

Apesar de prevalecer o frio, essa época foi marcada por mudanças climáticas extremas, chamadas de eventos Heinrich, principalmente entre 80 mil e 11 mil anos atrás. Pela análise de camadas de gelo pré-históricas, os cientistas sabem que a temperatura chegou a subir 10 ºC em pouco menos de uma década e depois cair drasticamente por mil anos onde hoje é a Groenlândia. 

Os pesquisadores envolvidos nas simulações acreditam que essa variação climática se deve aos efeitos que o fechamento do estreito de Bering provoca na dinâmica do oceano. Uma das evidências disso é que, quando o clima se estabilizou, durante o Holoceno (época que se estende de 11,5 mil anos atrás até hoje), o estreito estava aberto.

Segundo os cientistas, o fim da ligação entre os oceanos Ártico e Pacífico faz com que a água fria e pouco salina proveniente do derretimento de geleiras no Ártico fique represada e não consiga escoar para o Pacífico, como ocorre normalmente. Ela então segue caminho direto para o Atlântico Norte, que fica mais frio e menos salgado.

O acúmulo de água fria no Atlântico causa o colapso de uma importante corrente oceânica responsável pela estabilidade do clima, a Circulação de Revolvimento Meridional do Atlântico (Amoc, na sigla mais usada, em inglês).

Confira o funcionamento da Amoc

Esse sistema de circulação oceânica é caracterizado pelo transporte de águas quentes do Atlântico Sul para o norte e de águas frias do Ártico para o sul. Um ciclo que se dá principalmente pela diferença de densidade das águas: a água salgada e fria no extremo norte afunda e segue para o sul, retornando aos poucos à superfície, enquanto a água quente do sul flutua e segue para o norte.

Se a água fria vinda do norte que chega ao Atlântico é menos salgada – pois atingiu diretamente essa região, sem se misturar com a água salgada do Pacífico –, ela não afunda e a circulação Amoc para, mudando bruscamente o clima do planeta.

Nas simulações feitas em computadores com modelos do clima das eras glaciais, de hoje e de um possível futuro com o estreito fechado, os pesquisadores confirmaram essa teoria. 

“Nossos modelos mostram que, enquanto o estreito de Bering estiver aberto, estamos a salvo de mudanças climáticas abruptas, pois a Amoc não corre perigo”, afirma o líder da pesquisa publicada na PNAS, Aixue Hu, meteorologista do Centro Nacional de Pesquisa Atmosférica dos Estados Unidos.

Estamos mesmo a salvo?

Segundo Hu, sob condições normais, é possível prever que o estreito fique aberto nos próximos 10 mil anos, quando poderia se iniciar uma nova era glacial. Mas, devido à influência do aquecimento global causado pelo acúmulo de gases-estufa na atmosfera, esse período pode só chegar daqui a 20 mil anos.

“Para que o estreito se feche é preciso que o nível do mar caia no mínimo 50 metros, como ocorreu no último período glacial devido à elevação das faixas de gelo na América do Norte”, explica o pesquisador. “Enquanto a emissão de gases do efeito estufa aumentar, espera-se que o clima seja mais quente, então não precisamos nos preocupar com a possibilidade de fechamento do estreito.”

Com a grande emissão de gases do efeito estufa, não há risco de fechamento do estreito. No entanto, a alta concentração desses gases pode provocar a parada da Amoc

Isso não quer dizer, porém, que o aquecimento global não seja um problema. O oceanógrafo Alexandre Fernandes, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), conta que muitos outros trabalhos apontam justamente a concentração de gases-estufa como um fator que pode levar à parada da Amoc.

O pesquisador explica que o derretimento do gelo continental, devido ao aquecimento global, causa o mesmo problema observado nas simulações com o estreito de Bering fechado. Mais água fria chega ao Atlântico, podendo também parar a importante corrente oceânica.

“Esse trabalho é interessante, mas foca apenas em um dos fatores que podem influenciar a Amoc e o clima, o que não é suficiente para afirmar que não correrão mudanças climática abruptas”, diz. “Além disso, simulações trabalham elementos que são difíceis de quantificar e sempre existe um grau de incerteza.” E completa: “Devemos olhar esses resultados com ceticismo”.

Sofia Moutinho
Ciência Hoje On-line