Bendito veneno

 

Um peptídeo presente no veneno de serpentes pode ser capaz de impedir a metástase – o surgimento de tumores secundários devido à migração de células cancerosas do foco inicial. A constatação foi feita em um estudo que o Laboratório de Farmacologia Bioquímica e Celular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) está empreendendo, com resultados bastante positivos.

Pulmões de camundongos usados em experimento similar ao da pesquisa brasileira: (A) Camundongo normal; (B) Infectado por melanoma (pontos pretos); (C) Tratado com pequena dose de desintegrina; (D) Tratado com alta dose de desintegrina (reprodução/In-Cheol Kang et al.).

Estudos internacionais haviam mostrado que uma proteína presente no veneno das jararacas – a desintegrina – é capaz de inibir a proliferação do melanoma (tipo de câncer de pele) pelo organismo. A equipe coordenada pela farmacologista Thereza Christina Barja-Fidalgo resolveu, então, aplicá-la no Brasil. O estudo da Uerj conta também com colaboradores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Instituto Butantan, em São Paulo.

A ação da desintegrina está sendo testada em células humanas in vitro e em camundongos. Foram injetadas em dois grupos desses animais células de melanoma com alto potencial para gerar metástases, principalmente para o pulmão. O resultado mostrou que, no grupo de camundongos tratados com a desintegrina, a incidência de tumor pulmonar foi reduzida em 40%.

Já nos experimentos in vitro , as células do melanoma são tratadas com diferentes concentrações de desintegrina. O objetivo é verificar o efeito desse peptídeo na proliferação das células e no citoesqueleto celular (estrutura responsável por manter a integridade física da célula, envolvida também no processo de adesão e migração celular).

Ação bloqueadora
A desintegrina tem a estrutura molecular muito parecida com a da proteína de matriz –a base pela qual as todas as células se movimentam pelo interior do corpo humano. Essas proteínas, no entanto, não estão presentes na célula, e têm que ser assimiladas a ela por uma proteína receptora chamada integrina. Exatamente por causa dessa semelhança, a desintegrina “engana” a célula cancerosa e conecta-se a ela, impedindo a associação às proteínas de matriz e, portanto, a migração do tumor.

Thereza Christina aponta que a pesquisa brasileira está mostrando um diferencial importante em relação ao estudo asiático que a inspirou. “Acreditava-se que a desintegrina agiria como um ‘bloqueador’, impedindo a associação com as proteínas de matriz. Mas estamos comprovando que ela também modifica os mecanismos moleculares de multiplicação celular, retardando-os ou inibindo-os.”

Os próximos passos incluem experimentos com outros tipos de células tumorais, como as do câncer de mama e de esôfago. É ainda intenção da pesquisa identificar na molécula de desintegrina a estrutura responsável por bloquear o acesso da integrina à matriz. “O veneno das cobras é uma matéria prima muito cara”, afirma Thereza. “Estamos tentando obter fontes mais baratas de desintegrinas, criando bactérias capazes de produzir o trecho exato dessa proteína responsável pelo bloqueio celular, o que nos forneceria uma fonte barata da substância.”

Os pesquisadores já submeteram o estudo para publicação em uma revista científica da área. Mas alertam que pode demorar até que as descobertas feitas em laboratório possam parar nas prateleiras das farmácias. “O ideal seria conseguir inibir somente as células tumorais, sem causar efeitos colaterais, interferindo na metástase e na sobrevivência dessas células cancerosas”, diz Thereza. “Mas um medicamento que faça isso só será possível, se tudo correr bem e com muito otimismo, em pelo menos 10 anos.”

Rosa Maria Mattos
Ciência Hoje On-line
12/05/2006