A atuação das células do sistema imunológico é bastante conhecida: elas são como um exército que reage ao alerta de que alguma coisa no corpo não vai bem. Agora pela primeira vez o percurso dessas células em um organismo vivo pôde ser minuciosamente monitorado. Um vídeo dessas estruturas em ação foi feito por um pesquisador brasileiro em parceria com cientistas canadenses.
“Nossa intenção é entender esse mecanismo para desenvolver anti-inflamatórios específicos para diferentes tipos de lesão celular”, diz o imunologista Gustavo Batista de Menezes, professor do Departamento de Morfologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). “Isso pode no futuro reduzir o tempo de tratamento e os efeitos colaterais dos medicamentos”, acrescenta o pesquisador.
O trabalho, publicado na revista Science, foi concluído após incontáveis horas de filmagem experimental em camundongos. Com essa técnica, os pesquisadores conseguiram obter quatro horas ininterruptas da ação das células de defesa (neutrófilos) no fígado lesionado de um camundongo. Esse é o tempo que elas levam, em média, para iniciar a fase aguda da resposta inflamatória.
Assista a uma compilação das quatro horas de filmagem da ação dos neutrófilos no organismo de um camundongo
O camundongo do vídeo foi anestesiado e teve seu fígado exposto cirurgicamente. Segundo Menezes, o fígado foi escolhido para o estudo por ser um órgão frequentemente afetado durante vários processos inflamatórios.
Após essa etapa, um pequeno ponto do órgão foi queimado com uma agulha para provocar uma lesão experimental, simulando um machucado. O camundongo foi geneticamente modificado para produzir neutrófilos fluorescentes (verdes), enquanto as células mortas do fígado e da pele foram tingidas com corante vermelho fluorescente, o que permitiu a precisa localização da lesão.
O vídeo foi feito por meio de microscopia intravital, ou seja, dentro de um organismo vivo. Durante a filmagem, os pesquisadores usaram um microscópio a laser de alta resolução conhecido como microscópio confocal.
Diante das lentes do microscópio, essa visualização detalhada permitiu que os pesquisadores comprovassem a ação de três “sinalizadores” do organismo, que alertam o sistema imunológico sobre o perigo iminente. Os mecanismos descritos foram confirmados por experimentos feitos na rede vascular da pele de camundongos e com células humanas in vitro.
A batalha passo a passo
O primeiro sinal de inflamação vem do ATP, molécula fonte de energia que é normalmente produzida e estocada por todas as células. Juntamente com o ATP, pedaços de organelas celulares, como as mitocôndrias, são liberados no meio extracelular. “Se existe ATP e mitocôndrias livres fora da célula, isso é um indicativo de necrose celular”, diz Menezes.
Segundo o pesquisador, as células sadias ao redor das células mortas sinalizam o caminho para os neutrófilos por meio da liberação de “moléculas-guia”, as quimiocinas. “Esse conjunto de fatores é o que indica ao sistema imunológico onde é a lesão”, afirma. A presença no meio externo de formil-peptídeos, provavelmente derivados de mitocôndrias, confirma a hipótese de que essas organelas teriam sido liberadas de células necrosadas.
Menezes explica que a mitocôndria tem um papel importante nesse processo de defesa. “Há uma teoria, chamada Endossimbiótica, de que a mitocôndria tenha sido, em um passado remoto, uma bactéria livre que colonizou as células e permaneceu nelas durante a evolução, estabelecendo uma relação vantajosa para ambas: a mitocôndria produz energia para a célula e, em troco, a célula oferece proteção à mitocôndria”, diz. Isso teria feito com que o organismo mantivesse a capacidade de reconhecê-la, a princípio, como uma bactéria invasora, caso ela esteja fora da célula, e iniciasse, assim, a resposta imunológica.
Bruna Ventura
Ciência Hoje On-line