Brasileira das estrelas

Não faz tanto tempo que começamos a entender um pouco melhor o infinito espaço que nos cerca. Hoje, equipamentos modernos e potentes investigam a vastidão do cosmos para que nossa espécie consiga compreender ao menos uma fração de sua complexidade. Na Terra, cientistas como a astrofísica extragaláctica Duília de Mello, pesquisadora da agência espacial norte-americana (Nasa), trabalham para desvendar esses segredos.

Desde pequena encantada pela beleza e pelos mistérios dos céus, Mello dedica a maior parte do seu tempo hoje ao estudo das galáxias, em especial aos processos de interação e colisão entre elas, que podem dizer muito sobre a história e a estrutura do cosmos e a formação de nosso próprio mundo. No Goddard Space Flight Center, da Nasa, tem participado de alguns dos mais importantes estudos que analisam os registros de equipamentos destinados à observação do universo, como o telescópio espacial Hubble. Ela foi uma das responsáveis pela descoberta das bolhas azuis, regiões com grande número de estrelas jovens no espaço entre galáxias criadas no processo de colisão entre essas gigantescas estruturas do universo.

Mesmo com a cabeça ‘nas estrelas’, Mello não abandona suas raízes brasileiras – ela vem com regularidade ao país, onde atua na divulgação da ciência, tarefa que também considera fundamental. Além de ministrar palestras sobre temas como astrofísica e o estudo de galáxias, já manteve um blogue intitulado Mulher das estrelas e hoje tem uma página homônima no Facebook. Além disso, coordena o programa Ciência sem fronteiras na Universidade Católica da América, em Washington, onde também trabalha, e defende a internacionalização dos estudantes brasileiros.

Mello recebeu, na última semana, o Prêmio Profissional do Ano 2013 da Diáspora Brasil, que reconhece o destaque de cidadãos brasileiros que vivem no exterior nas áreas de ciência, tecnologia, inovação e empreendedorismo. Ela conversou com a CH On-line logo após palestra no II Encontro de Ciências do Universo, realizado pelo Núcleo de Pesquisa de Ciência (Nupesc) no sábado (31/05) no Planetário do Rio de Janeiro. Nesta entrevista, ela falou sobre seu trabalho e as perspectivas das missões e projetos que visam estudar o universo e defendeu a importância de divulgar a ciência.

Duília de MelloCH On-line: Como começou o estudo das galáxias, área em que você trabalha na Nasa?
Mello: Essa área começou em 1845, quando William Parsons descobriu ‘nebulosas espirais’, que hoje conhecemos como galáxias. Em 1923, Edwin Hubble utilizou o brilho de estrelas cuja luminosidade variava com o tempo para provar que essas estruturas não faziam parte da Via Láctea e observou que o espectro emitido pela maioria dessas galáxias apresentava um desvio para o vermelho, sinal de que se afastam a grandes velocidades – ou seja, o universo está em expansão. Em 1926, o próprio Hubble começou a classificar as galáxias, de acordo com a forma: elípticas; espirais e espirais barradas; ou irregulares. Acreditamos, por exemplo, que a Via Láctea tem forma espiral, com uma barra no centro – mas é claro que ninguém nunca saiu da Via Láctea para conferir! Da Terra, podemos ver apenas um braço da galáxia ou seu centro.

Se o universo se expande, como acontece o processo de colisão entre as galáxias?
Embora o universo esteja em expansão, localmente ocorrem muitos processos de colisão. Por exemplo, a Via Láctea está rumando de encontro a Andrômeda, mas a colisão entre elas só vai ocorrer daqui a 3,5 bilhões de anos – então por enquanto não precisamos nos preocupar!

E o que ocorre em uma colisão entre galáxias?
Essas estruturas são tão grandes que, quando colidem, as estrelas que as compõem não se chocam umas com as outras – mas o gás e a poeira sim. A interação entre gás, poeira e a atração gravitacional das estrelas leva à formação de novas estrelas, que podem ser incorporadas às galáxias. Quando observamos uma imagem do universo, as manchas azuis indicam uma área de intensa formação de estrelas. A colisão pode gerar ainda um canibalismo, quando uma galáxia grande ‘come’ uma pequena – o processo está em andamento na Via Láctea, que canibaliza a galáxia anã de Sagitário. Outra possibilidade é a geração de um starburst, um surto estelar, com a intensa formação de uma enorme quantidade de estrelas. Tudo isso faz parte do processo evolutivo das galáxias, que ainda buscamos entender melhor.

Via Láctea e Andrômeda
Simulação dos céus da Terra daqui a cerca de 3,5 bilhões de anos, quando a Via Láctea e a galáxia de Andrômeda devem estar em processo de colisão – um espetáculo e tanto. (imagem: Nasa)

O seu trabalho com as imagens de campo profundo do universo feitas pelo telescópio Hubble também está relacionado ao estudo das galáxias, certo?
Sim, o campo profundo nos deu pistas para entender melhor as estruturas do cosmos. Em 1995, o então diretor do Hubble, Robert Willians, perguntou aos astrônomos o que fariam com o Hubble se o telescópio fosse só deles: ‘apontaríamos para um ponto escuro do universo’, responderam. Isso era algo que ninguém faria normalmente, pois o tempo disponível para o uso do telescópio é exíguo, devido à sua concorrida agenda. Então ele mesmo usou seu tempo para fazer isso: focalizou por um total de 11 dias um ponto próximo a Ursa Maior e o resultado foi o primeiro Campo Profundo do Hubble, obtido ainda em 1995. Depois, fizemos aproximações maiores nesse campo profundo, os campos ultraprofundo e extremamente profundo do Hubble, em 2009 e 2012, respectivamente.

E o que esse trabalho nos mostrou sobre as galáxias?

Não sabemos ainda se existe relação entre forma e tempo de formação das galáxias, mas essa é uma das áreas em que pode haver novidades importantes nos próximos anos

Observando o campo profundo, estamos vendo um volume pequeno do universo, menor a cada vez que aprofundamos. Mesmo assim, ele mostra grande quantidade de galáxias, sinal de que devem existir bilhões e bilhões delas. Essa observação também nos permite olhar o passado do universo, o que existe a 13 bilhões de anos-luz da Terra – isso é, apenas algumas centenas de milhões de anos depois do Big Bang.

Podemos ver galáxias com estrutura parecida com as que estão mais próximas de nós, mas também muita coisa singular. Não sabemos ainda se existe relação entre forma e tempo de formação das galáxias, mas essa é uma das áreas em que pode haver novidades importantes nos próximos anos. O campo profundo também mostra que há muita interação entre as galáxias, por isso, é fundamental o estudo dessa área.
 
Existem limitações do quão longe o Hubble consegue enxergar?
Na verdade, é bem difícil determinar ao certo a distância dos objetos quando tratamos de corpos tão longínquos. A maneira mais precisa de observação desses corpos no espaço é a espectroscopia, que estuda a radiação eletromagnética produzida por eles, mas objetos distantes têm um espectro muito fraco. Uma alternativa útil é utilizar as chamadas lentes gravitacionais para enxergar mais longe – nesse fenômeno, a luz originária de galáxias distantes, ao passar próximo de aglomerados de estrelas, é distorcida e amplificada, permitindo sua visualização de forma mais brilhante. Um problema é que, como os objetos estão a uma distância muito grande e se afastando em alta velocidade, sua luz tende a se deslocar para o vermelho e pode entrar em uma região infravermelha do espectro, que o Hubble não enxerga.

Um dos projetos mais aguardados para os próximos anos é o lançamento do Telescópio Espacial James Webb. O que podemos esperar dele?
O James Webb é um telescópio infravermelho, ele vai tentar estudar as galáxias ainda mais distantes, que estão a 12, 13 bilhões de anos-luz. Sabemos muito pouco sobre elas, não sabemos nem se estão mesmo a essa distância, apesar de tudo indicar que sim. A gente precisa investir em tecnologia, até mesmo criar novas tecnologias, para obter novas respostas. Com todas essas imagens profundas, temos uma ideia das épocas, mas ainda há muita coisa para ver. E há uma questão adicional: quando comparamos objetos distantes e próximos, nem sempre podemos fazê-lo usando ondas com o mesmo comprimento, então como proceder? É preciso de um estudo minucioso no mesmo comprimento de onda e isso é difícil de fazer.

Telescópio Espacial James Webb
O Telescópio Espacial James Webb deve ser lançado em 2018 e vai trazer mais informações sobre o passado do universo, explorando grandes distâncias com receptores de radiação infravermelha, que o Hubble não possui. (imagem: James Webb Space Telescope/ Flickr – CC BY 2.0)

Além do Hubble, temos vários outros telescópios e outros equipamentos dedicados a estudar o universo. Como eles ajudam a conhecê-lo?
Sem dúvida, hoje conhecemos muito mais do que há 20 anos, mas ainda há muito que aprender. Por isso, é muito importante termos equipamentos com alcances diferenciados e que estudem diversos comprimentos de onda, como o Chandra, que trabalha com raios X, ou o Galex, com ultravioleta. Estamos vendo outros processos físicos dos mesmos objetos que a gente conhece e sempre temos algo para aprender com isso, novos dados que ajudam a aprimorar nosso conhecimento. Alguns podem perguntar: ‘será que precisamos mesmo disso tudo, já não sabemos o suficiente?’ Claro que não! É só pensar no mistério que ainda representam a energia escura e a matéria escura; não sabemos quase nada sobre elas e elas representam mais de 90% do universo.

Você também se dedica muito à divulgação científica. Qual a importância dessa atividade, na sua opinião?

Toda a sociedade se beneficiaria com mais jovens interessados em carreiras científicas, por isso, vejo a divulgação como um dever do cientista

Eu faço divulgação há 20 anos, pois acredito que não vale a pena guardar o conhecimento apenas para si. Trabalho com astronomia porque sou curiosa e o que aprendo quero passar adiante. Passo para os cientistas, como todo mundo faz, mas gosto de passar para o público também. Acho que isso inspira, estimula o jovem a estudar, se dedicar. Toda a sociedade se beneficiaria com mais jovens interessados em carreiras científicas, por isso, vejo a divulgação como um dever do cientista. Atualmente faço mais pelo Facebook, no Mulher das estrelas. Acho que isso é uma evolução da divulgação. A juventude cansou um pouco de blogue, não tem mais interesse em ler coisas longas, prefere imagens com um pouquinho de informação. Então é isso que faço, e acho que tem dado certo.

E como é ser uma ‘mulher das estrelas’ em um meio ainda muito dominado por homens?
Com certeza isso é importante para estimular as meninas. Precisamos de mais mulheres cientistas também. A figura do cientista é muito masculina, em qualquer lugar do mundo. Por mais que você tenha exemplos como a Marie Curie, Einstein é a figura em que todo mundo pensa primeiro.  

Você vem com bastante regularidade ao Brasil. Qual a sua relação com nosso país?
Acho muito importante para estimular os jovens brasileiros. Venho regularmente ao Brasil, pelo menos uma vez por ano, às vezes mais. O país financiou minha educação, estudei na UFRJ [Universidade Federal do Rio de Janeiro], no Inpe [Instituto de Pesquisas Espaciais], na USP [Universidade de São Paulo]; acho que é hora de dar um retorno e é o que faço. Nunca cobrei um centavo para dar palestras, adoro a interação com o público brasileiro, é um público até meio sedento, pois não tem tanta gente que faça divulgação científica por aqui. Estar perto dos jovens me lembra do tempo em que era estudante. Isso me energiza e é importante pra eles também.

Você também coordena o programa Ciência sem fronteiras na Universidade Católica Americana. Como é esse trabalho?
Atualmente tenho muito contato com o Ciência sem fronteiras, sou fã numero um do programa. Curiosamente, nunca tinha tido um orientando brasileiro, os alunos participantes são mais das áreas de tecnologia, engenharia, ciência da computação. Só agora estou trabalhando com alunos de iniciação científica na área de ciência da computação, pois tenho me interessado muito por análise computacional, big data.

O Ciência sem fronteiras é um programa fantástico, o melhor investimento que o Brasil poderia fazer na juventude. Um ano fora do país dá maturidade, abre os horizontes, traz muitas experiências. Vai além do livro, é uma experiência cultural. O Brasil é muito isolado, nossa juventude precisa se internacionalizar. Um dos motivos que eu vejo de o Brasil estar como está é justamente o fato de sermos isolados. A partir do momento em que o jovem vê como a coisa é lá fora, ele se pergunta: mas por que no Brasil não é assim? E a partir daí pode agir para trazer as experiências boas para cá.