Na cidade de Divinésia, interior de Minas Gerais, o produtor de cachaça Agostinho Batista precisa guardar sua bebida durante 15 meses em barris de carvalho antes de vendê-la. Assim como ele, qualquer pessoa que queira distribuir sua aguardente de cana no mercado precisa estocá-la por um período que vai de seis meses a cinco anos. Esse envelhecimento é fundamental para apurar o sabor e o aroma do destilado.
Pensando em apresentar alternativas a esse processo, pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) descobriram uma nova utilidade para o processo de irradiação: deixar a cachaça no ponto desejado, diminuindo o tempo e os custos envolvidos.
Durante o envelhecimento artificial, a bebida já engarrafada e embalada passa por uma esteira e é atingida por raios gama. Esse tipo de radiação eletromagnética é geralmente produzida por elementos instáveis – no caso, o cobalto-60.
Quando os raios gama atravessam a garrafa, os átomos da cachaça são ionizados, ou seja, excitados eletricamente pela energia da radiação. De acordo com o biólogo Valter Arthur, coordenador da pesquisa e professor do Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena/USP), isso faz com que ocorram diversas reações químicas.
Uma delas é a formação de radicais livres, que interagem entre si, fazendo com que ocorra a diminuição do pH, do teor alcoólico e dos aldeídos, compostos responsáveis pela dor de cabeça da ressaca. “Os processos físico-químicos são semelhantes aos que aconteceriam durante o envelhecimento natural do destilado”, afirma.
Até agora já foram irradiados cerca de 50 litros da bebida no Cena. Uma das principais preocupações era chegar a um nível ideal de radiação, que acelerasse o envelhecimento ao máximo sem prejudicar as características físico-químicas e sensoriais. A dose ficou estabelecida em 0,3 quilograys (kGy) – unidade padrão usada para indicar a quantidade de energia absorvida por um quilo de matéria.
Um aparelho chamado irradiador – ou fonte de cobalto-60 – libera e direciona a energia produzida no processo. Como os equipamentos do centro são de pequeno porte, destinados a pesquisas e com doses relativamente baixas de radiação, o procedimento dura aproximadamente 45 minutos, mas os irradiadores comerciais são capazes de realizar o mesmo processo em cerca de cinco minutos.
Sobre sabor e risco
O método de envelhecimento artificial desperta o interesse de Batista – o produtor. Mas, antes de enviar sua cachaça para a irradiação, ele exigiria garantia de que seu produto não perderia em sabor – para ele próprio não perder seus clientes. Na USP, foram realizados testes de degustação com 40 pessoas, entre funcionários e estudantes de graduação e pós-graduação, que não perceberam diferenças entre amostras envelhecidas naturalmente e irradiadas.
Outra questão importante é entender se o processo envolve algum tipo de risco. Apesar de o nível de radiação que passa pela garrafa ser o equivalente ao que um paciente receberia ao ser submetido a cerca de 10 mil tomografias computadorizadas, Arthur explica que a dose é considerada baixa para esse tipo de procedimento e não há contato entre o líquido e o cobalto-60.
“Não existe qualquer risco para os consumidores; muitas pessoas confundem material irradiado com material contaminado por radiação”, afirma. “Depois do processo, a cachaça pode ser consumida imediatamente, pois não fica com nenhum resíduo radioativo.”
O pesquisador também assegura que a quantidade de radicais livres gerada no processo não é prejudicial e que não há formação de substâncias nocivas à saúde. De todo modo, no Brasil, todo alimento (ou bebida) irradiado deve ter impresso no rótulo o símbolo Radura.
Entraves à produção
Apesar dos resultados positivos obtidos até agora pela equipe de Arthur, ainda há um grande porém a ser resolvido: a cachaça irradiada não adquire a coloração amarelada, própria da bebida armazenada em barris. Isso poderia levar o consumidor à falsa impressão de que o sabor também não está ‘envelhecido’.
Os pesquisadores já buscam soluções. Uma delas pode ser a incorporação de extratos vegetais e própolis à cachaça antes de ela ser irradiada. Essa alternativa está sendo testada pelo Cena, com todo cuidado para que as dosagens aplicadas alterem apenas a cor, e não o gosto ou o aroma da bebida.
De acordo com Arthur, a versão irradiada – e amarelada – da bebida apresentará uma série de vantagens aos produtores. “O envelhecimento artificial de uma tonelada de cachaça sai por cerca de R$ 50 e o fabricante coloca o produto no mercado em uma velocidade muito maior do que no caso dos barris”, afirma. “Além disso, o processo não é patenteado”, conclui.
Se vai mesmo valer a pena aderir à irradiação é uma questão que dependerá dos objetivos e da escala do empreendimento de cada produtor. Atualmente, é possível comprar barris de carvalho usados com capacidade de 200 litros por cerca de R$ 400. De acordo com Batista, os recipientes não exigem praticamente nenhuma manutenção.
Caso o novo método de envelhecimento seja popularizado, o mais provável é que os produtores, em vez de adquirirem equipamentos próprios, enviem suas bebidas para empresas terceirizadas que prestem o serviço. Isso porque, segundo Arthur, o preço de um irradiador comercial está entre três e cinco milhões de dólares.
Yuri Hutflesz
Ciência Hoje On-line