Cidadania para crianças em favelas

 

Como a escola pública e os projetos sociais transmitem a noção de cidadania para crianças moradoras de favelas? Segundo pesquisa liderada pelo sociólogo Marcelo Burgos no Departamento de Sociologia Política da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), os problemas vividos pelos estudantes nas comunidades carentes são transportados para dentro dos estabelecimentos de ensino e causam um efeito devastador. Nesse contexto, professores e diretores enfrentam, quase sozinhos, o desafio de transmitir valores básicos a esses alunos. 

Os problemas vividos por estudantes que moram em favelas, como a violência, a insegurança e a falta de liberdade, atingem e desorganizam o ambiente escolar, segundo pesquisa da PUC-RJ. 

A equipe, formada também pelas professoras Ângela Paiva e Sarah da Silva Telles e por 14 alunos de graduação em Ciências Sociais, todos da PUC-RJ, selecionou quatro favelas cariocas como objeto de estudo: Santa Marta, Rio das Pedras, Nova Holanda e Cidade de Deus. Dentro dessas comunidades, foram escolhidos aleatoriamente dez escolas públicas e aproximadamente 25 Organizações Não Governamentais (ONGs) e projetos sociais. Ao todo, foram entrevistados para a pesquisa 53 professores, oito diretores e 40 participantes de projetos sociais, entre educadores e monitores.

 

Embora tanto as ONGs quanto as escolas tenham o papel de educar e socializar as crianças das favelas, existem questões que são específicas de cada um desses agentes sociais. No caso das ONGs, Burgos conta que existe um conflito entre as pessoas de fora da favela que criam projetos sociais na comunidade e seus moradores. “As pessoas acham que as ONGs estão querendo se aproveitar da comunidade”, explica. Outro problema é o pouco diálogo existente entre os vários projetos sociais que atendem as mesmas crianças. ”Há também uma disputa entre as próprias ONGs e a escola, pois todas desejam atrair para si o papel de formador de cidadãos.”

 

A escola pública, segundo o sociólogo, tem um papel estratégico maior do que o das ONGs, por ser a instituição principal responsável pela transmissão dos valores universais dentro do modelo de sociedade em que vivemos. De acordo com a pesquisa, os problemas da favela invadem e desorganizam o ambiente de ensino, devido aos efeitos devastadores que geram nos estudantes. “Os professores relatam casos de alunos que às vezes precisam dormir na escola porque é o lugar mais seguro. Ou de estudantes que assistem às aulas ainda no clima do baile da noite anterior”, exemplifica. “O caráter ostensivo do tráfico é somente a parte visível. As crianças são duplamente vitimadas: pela violência e pelos efeitos sutis e simbólicos que ela gera em seu dia-a-dia.”

 

Controle que limita a criatividade

 

No caso das favelas controladas por milícias, a atmosfera tende a ser mais amena. A milícia é vista como a única alternativa ao tráfico e, por isso, esse poder ilegal conta com o apoio da maior parte dos moradores. “As pessoas vivem sob uma vigilância constante, inclusive dos próprios moradores, o que inibe o desenvolvimento da cultura da liberdade”, afirma Burgos. Assim, as milícias têm o controle quase total da comunidade, o que também afeta os estudantes. “Os professores relatam que os alunos dessas comunidades são menos criativos”, aponta o pesquisador.

 

Segundo o sociólogo, as entrevistas com os professores e diretores das escolas públicas confirmaram que esses profissionais de fato enfrentam solitariamente o desafio de transmitir valores básicos para os estudantes moradores de favelas. “O problema não consegue ultrapassar os limites da própria escola: a Prefeitura foge do assunto por ser uma questão complicada; os professores se sentem acuados; e a classe média não se importa com a escola pública”, declara Burgos. O pesquisador ressalta ainda a importância do debate sobre o tema na mídia e nas universidades. E conclui: “A solução pressupõe o debate. Implantar a cidadania em crianças segregadas representa um desafio para a construção da democracia no país.”

 

 

Mariana Benjamin

 

Ciência Hoje On-line

21/03/2007