A banalidade do mal

As palavras precisam ser um pouco selvagens,
pois representam o ataque do pensamento
contra aqueles que não pensam
John Maynard Keynes (1883-1946)

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Selo alemão de 1988 lançado em memória da grande teorista política Hannah Arendt (1906-1975).

A teorista política Hannah Arendt (1906-1975) cunhou a notável expressão “a banalidade do mal” para descrever o infame nazista Adolf Eichmann (1906-1962), que havia sido responsável pela logística da deportação em massa dos judeus da Europa oriental para campos de concentração na Segunda Guerra Mundial.

Arendt ficou abismada com a vacuidade ideológica de Eichmann e levantou a questão de que o mal não precisa ser algo radicalmente diferente do normal. Ele pode ser simplesmente banal, decorrendo da tendência das pessoas a seguir ordens e a se alinhar com a opinião da maioria sem pensar criticamente sobre os resultados da sua ação ou inação.

Em sua edição de 15 de outubro, a revista brasileira IstoÉ publicou uma entrevista com o cientista político americano Charles Murray (1943-), sob o título “Miscigenação diminui o QI dos brasileiros”.

É desnecessário dizer que, do ponto de vista ético, a IstoÉ tem todo o direito de publicar essa entrevista e não pode ser censurada por fazê-lo. Entretanto, as razões pela qual a revista decidiu ouvir Charles Murray, publicar a entrevista e escolher um título tão chocante não ficaram claras. O tom da entrevista é neutro – não se nota nenhuma concordância dos jornalistas com as idéias de Murray, nem por outro lado há qualquer crítica explícita, incredulidade ou sarcasmo em relação a ele.

Murray é um personagem muito controverso no cenário intelectual americano. Em 1994, junto com Richard Herrnstein ele publicou The Bell Curve: Intelligence and Class Structure in American Life (A curva normal: inteligência e estrutura de classes na vida americana), um livro doutrinário, com forte conteúdo de darwinismo social, que causou grande polêmica nos Estados Unidos.

Segundo o evolucionista americano Stephen Jay Gould (1941-2002), velho conhecido dos leitores da Deriva Genética, o livro não passa de um manifesto do pensamento ultraconservador, maltratando a ciência e distorcendo dados para promover uma agenda de redução de programas sociais do governo na área educacional.

Falácias e sofismas
Em 1961 Gould já havia publicado um esplêndido livro chamado The mismeasure of man (traduzido para o português como A falsa medida do homem), no qual estudou historicamente o imbroglio sobre inteligência, QI, genética e raças. Gould demonstra brilhantemente como uma cadeia desastrada de falácias e sofismas, acidentais ou propositais, pode gerar construções culturais enganosas e perversas e, infelizmente, influentes e duradouras. A receita é simples:

Capa do brilhante livro The mismeasure of man (“A falsa medida do homem”), publicado em 1961 por Stephen Jay Gould. Com erudição e fria lógica, Gould disseca historicamente a relação entre inteligência, QI, genética e raças, expondo sofismas e exorcizando falácias.

1) Colecione uma série de variadas características comportamentais humanas, como raciocínio abstrato, memória, capacidade de concentração, velocidade de aprendizado e habilidade para expressão verbal. Chame o conjunto destas habilidades de “inteligência”. Passe a se referir a essa “inteligência” como se fosse algo concreto de nossa experiência empírica do mundo (esse processo chama-se “reificação”, do latim res, que quer dizer “coisa”).

2) Desenvolva um questionário para medir essa “inteligência” e chame a medida de “quociente de inteligência” (QI).

3) Passe a tratar a “medida da inteligência” (o QI) como se fosse a própria “inteligência”.

4) Encontre correlações familiares nas medidas de QI e anuncie ao mundo que a “inteligência” tem alta herdabilidade.

5) Introduza em seu teste de QI alguns vieses que privilegiem a sua própria cultura. Por exemplo, pergunte fatos da história dos Estados Unidos. Negue a existência desses vieses em qualquer tratamento futuro do tema. (Para ter uma idéia deles, imaginemos um teste de QI desenvolvido por uma nação de índios na Amazônia, para os quais inteligência é a “capacidade de viver com sucesso na floresta”. O teste de QI envolveria identificação de raízes comestíveis, fabricação de arco e flecha, construção de canoas etc. Certamente, nesse teste, Einstein teria um QI baixíssimo.)

6) Compare medidas de QI entre dois grupos, por exemplo, brancos e negros americanos, e observe que as médias dos grupos diferem em 10 ou 15 pontos. Ignore a variabilidade dentro dos grupos e concentre seu discurso nas médias. Ignore também as características culturais dos grupos e atribua qualquer diferença observada exclusivamente a fatores genéticos.

7) Anuncie ao mundo que é perda de tempo querer fazer programas sociais educativos e de ação afirmativa para o grupo com média inferior argumentando que ele é biologicamente inferior.

Quando li The mismeasure of man, fiquei tão impressionado com a argumentação de Gould que pensei que, depois desse livro, ninguém nunca mais teria a “cara de pau” de argumentar a favor de uma diferença genética de “inteligência”entre populações ou povos. Ledo engano!

A reemergência do mal
Tal é a natureza do mal. Ele fica dormente por algum tempo, mas periodicamente reemerge, mostrando a sua horrenda cabeça. Isso ocorreu em 2007 com as desastradas declarações de James Watson que já foram tratadas em uma coluna anterior. Ocorreu agora novamente nas páginas da IstoÉ.

Examinemos agora, à luz da nossa receita acima, algumas passagens da entrevista de Charles Murray:
IstoÉ – Qual o peso do ambiente na inteligência?
Murray – As estimativas são de que o QI é entre 40% e 60% produzido pelo ambiente e o resto é genético.
Meu comentário – Observe que a pergunta refere-se ao peso do ambiente na “inteligência” e que a resposta Murray fala sobre a genética do QI. Ocorre aqui a falácia de confundir algo (“inteligência”) com a sua medida (QI).

IstoÉ – O sr. já foi acusado de racismo. Os brancos são mesmo mais inteligentes que os negros?
Murray – Fui acusado de racismo porque mostrei um indiscutível fato empírico: quando amostras representativas de brancos e negros são submetidas a testes que medem a habilidade cognitiva, os resultados médios são diferentes. Isto não é uma opinião.
Meu comentário – Observe que Murray afirma que o teste de QI mede de maneira fiel algo mal definido, que ele chama de “habilidade cognitiva das pessoas” e que também é chamado de “inteligência”. Se ele acredita, como demonstrado na resposta anterior, que “inteligência” (ou “habilidade cognitiva”) é aquilo que é medido pelo teste de QI, temos uma tautologia: o teste de QI mede aquilo que o teste de QI mede. Adicionalmente, não há nenhuma menção a respeito dos vieses culturais dos testes de QI.

IstoÉ – O Brasil é um país onde a miscigenação é a regra. Isso significa que o QI médio do brasileiro é inferior ao dos nórdicos, por exemplo?
Murray – É uma questão de aritmética. Se em testes o QI é sempre maior com amostras de nórdicos do que com amostras de negros, então um país com uma significativa proporção de negros terá um QI médio inferior ao de um país que consiste exclusivamente de nórdicos. Isso é verdade, por exemplo, quando comparamos os Estados Unidos com a Suécia, da mesma forma que é verdade quando comparamos o Brasil e a Suécia. A única questão é empírica: as médias são sempre diferentes? Se são, a questão está respondida por si mesma.
Meu comentário – Observe que Murray está fazendo afirmativas derrogatórias a respeito do QI dos brasileiros sem nenhum dado empírico, sem nenhuma base científica e tão somente alicerçado em convicções doutrinárias. Essas afirmativas dele me lembram Gobineau e Spencer, ideólogos do racismo científico do século 19, para quem havia desigualdade entre as “raças” humanas. Segundo o racismo científico (que de científico não tinha nada), qualquer mistura entre as raças “puras” superiores (leia-se os nórdicos, no exemplo acima) com raças “inferiores” (os negros, no caso em questão) é inevitavelmente disgênica e desastrosa.

Esperança em Obama

Barack Hussein Obama II (1961-), negro, filho de um queniano da etnia Luo e de uma americana, eleito o 44º Presidente dos Estados Unidos.

Termino de escrever esta coluna no dia 5 de novembro de 2008. Ontem, Barack Hussein Obama II (1961-), negro, filho de um queniano da etnia Luo e de uma americana, foi eleito o 44º Presidente dos Estados Unidos.

Imagino que Charles Murray esteja de luto. Afinal, Obama – que, de acordo com a sua aritmética, deveria ter baixa inteligência – foi eleito por “goleada”. Ademais, a ideologia conservadora de Murray foi rejeitada nas urnas pelo povo americano.

Percebo Barack Obama como um homem brilhante, uma esperança para a solução dos problemas americanos e do mundo. E percebo Charles Murray como um homem banal. Qual dos dois será lembrado nos livros de história? 


Sergio Danilo Pena
Professor Titular do Departamento de Bioquímica e Imunologia
Universidade Federal de Minas Gerais
14/11/2008