A cidade arde

A recente greve dos bombeiros no Rio de Janeiro suscitou uma solidariedade poucas vezes vista entre a população carioca. Fitinhas e toalhas vermelhas decoraram carros e janelas mesmo daqueles que geralmente não nutrem grandes simpatias por greves e outros movimentos reivindicatórios. Afinal, bombeiros salvam vidas e ajudam até gatinhos presos no alto das árvores.

Em meio ao caos que parece ter atingido os serviços da cidade, com bueiros explodindo pelas ruas cariocas, o Corpo de Bombeiros ainda é, aos olhos da população, símbolo do heroísmo urbano.

Talvez tanta popularidade se deva não apenas ao aspecto ‘super-herói’ dos bombeiros, mas também à sensação, inexistente em muitos outros serviços urbanos, de que a extinção de incêndios é um serviço público de fato garantido aos cidadãos.

Embora o termo ‘serviço público’ seja relativamente recente, a ideia já estava presente na criação do Corpo de Bombeiros, ainda no século 19. Quem afirma isso é a professora Anita Correia Lima de Almeida, do Departamento de História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio).

Em sua pesquisa “Vida urbana e incêndios no Rio de Janeiro do século XIX”, ela analisa a relação entre o uso coletivo dos espaços públicos da cidade e os direitos dos cidadãos.

O tema, pouquíssimo estudado, não podia ser mais quente: a ideia é entender a partir de quando os habitantes do Rio de Janeiro passaram a considerar a extinção de incêndios como um serviço ao qual eles teriam direito.

Displicências perigosas

A questão do controle dos incêndios já era premente em todas as cidades grandes na segunda metade do século 19. O crescimento urbano, as aglomerações de casas, lojas e pequenas fábricas traziam consigo o perigo dos incêndios.

É famoso o grande incêndio de Chicago, ocorrido em 1871, que matou 300 pessoas e deixou 90 mil desabrigadas. Como as casas na época eram quase todas feitas de madeira, a cidade precisou ser inteiramente reconstruída. 

Grande incêndio de Chicago
‘Chicago in flames’, litografia de Currier e Ives. O famoso grande incêndio de Chicago, ocorrido em 1871, matou 300 pessoas e deixou 90 mil desabrigados. (imagem: Library of Congress/ Washington D.C.)

O Rio da segunda metade do século 19 não era muito diferente. Nessa época, a cidade crescia a passos largos. O centro da cidade era ocupado por imóveis de uso misto, moradia e comércio.

Quase todas as casas tinham chaminés e a madeira também era largamente usada nas construções. Para se ter uma noção do perigo, entre 1859 e 1881, dos 943 incêndios ocorridos na cidade, 169 foram causados por problema ocorridos nas chaminés (os dados são do Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas).

Mas não eram apenas as chaminés as vilãs das tragédias. Pequenas fábricas de velas e fogos de artifício também contribuíam para piorar a situação. O incêndio iniciado em uma dessas fábricas, localizadas muito próximas às residências, por vezes até dividindo o mesmo espaço, rapidamente se espalhava por armarinhos, padarias, tascas e casas de moradia, deixando de ser um problema privado para se tornar uma grande ameaça pública.

É aí que entra a criação do Corpo de Bombeiros. No dia 15 de maio de 1855, um incêndio nos fundos de uma fábrica de velas que destruiu um quarteirão inteiro fez aumentar o clamor pela criação de um órgão responsável pela extinção de incêndios. Até então, várias instituições possuíam bombas de água, mas a comunicação entre elas era precária.

Em 1855, um incêndio nos fundos de uma fábrica de velas fez aumentar o clamor pela criação de um órgão responsável pela extinção de incêndios

A chegada de “bombas de todos os estabelecimentos públicos” e de “várias autoridades”, como noticiou o Jornal do Commercio no dia seguinte ao incêndio, não impediu que o fogo se alastrasse rapidamente pelo quarteirão.

A tragédia também chamou a atenção de José de Alencar (1829-1877). O escritor brasileiro comentou em uma crônica que, no dia do incêndio, demorou uma hora para que as autoridades conseguissem colocar as bombas do arsenal da Marinha para funcionar.

No fim da crônica, publicada no livro Ao correr da pena (1874), perguntava-se se o mesmo ocorreria caso o incêndio tivesse acontecido em área mais nobre: “Tratava-se porém de um incêndio apenas, de cinco casas reduzidas a cinzas, e por isso não é de estranhar que não houvesse a mesma azáfama que costuma aparecer naqueles outros ramos mais importantes do serviço público”.

Caso de polícia

Menos de um ano mais tarde, em 26 de janeiro de 1856, era a vez de arder, pela terceira vez, o Teatro São Pedro. A sensação era de que ninguém estava seguro, nem “num salão todo elegante”, nem no mais importante teatro da cidade. Incêndios em teatros eram comuns e esse ganhou grande repercussão nos jornais da cidade

Teatro São Pedro
Teatro São Pedro antes do incêndio de 1856. A tragédia ganhou grande repercussão nos jornais da cidade e levou à criação do Corpo de Bombeiros. (foto: reprodução)

Nessa época, em pleno século 19, não dava mais para dizer que os incêndios eram tragédias naturais ou fenômenos causados pela ira divina, como era de costume no passado.

Vários jornais cobravam uma atuação mais efetiva das autoridades, até porque, ao contrário do ocorrido na fábrica de velas, dessa vez, além de ser um local frequentado pela nata da sociedade carioca, o incêndio tinha se iniciado em um espaço de uso público, e a responsabilidade pela segurança dos frequentadores cabia à polícia.

O Corpo de Bombeiros seria finalmente criado poucos meses depois, com o objetivo de coordenar os trabalhos das várias bombas de extinção de incêndios da cidade. Aos poucos, o órgão foi ficando responsável pela segurança das casas de espetáculo, igrejas e outros espaços de uso público.

Ao contrário de outros países, no Brasil, o Corpo de Bombeiros já nasceu como instituição do Estado. Daí a extinção de incêndios ser considerada um dos primeiros serviços públicos do país. O que era exatamente um serviço público, no entanto, ainda estava por ser definido, como argumenta Anita Almeida.

Da mesma forma, careciam de definições as concepções de deveres do Estado e direitos do morador. Não esqueçamos que o Rio de Janeiro do fim do século 19 tinha, entre seus habitantes, um número significativo de escravos que nem cidadãos eram.

Talvez não seja má ideia ressuscitar o clamor público que deu origem à criação do Corpo de Bombeiros

Felizmente, hoje não há mais escravos e ninguém pode dizer que faltem definições para serviço público, nem sobre quais sejam os deveres do Estado, os direitos do cidadão e as atribuições dos bombeiros.

Mas como ainda temos um longo caminho até que esses direitos sejam mesmo respeitados, talvez não seja má ideia ressuscitar o clamor público que deu origem à criação do Corpo de Bombeiros.

Em tempo: os primeiros resultados da pesquisa sobre os incêndios no Rio de Janeiro serão publicados em breve no livro Perspectivas da cidadania no Brasil Império, organizado por Adriana Campos e José Murilo de Carvalho.

Keila Grinberg
Departamento de História
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro