A distância entre o certo e o errado

O século 20 marcou um período de enorme progresso para os seres humanos. Essas poucas décadas proporcionaram uma melhoria nas condições sanitárias, de saúde e de alimentação que geraram um ganho médio de mais de 15 anos na expectativa de vida da maioria dos países do nosso planeta. A explosão demográfica mundial ocorrida nessa fase é prova desse sucesso.

O desenvolvimento tecnológico ocorrido no século 20 tem mudado a forma como vemos e nos relacionamos com os outros seres humanos.

Além disso, as diversas formas de desenvolvimento tecnológico surgidas nesse período têm tornado a nossa vida muito mais confortável e têm mudado a forma como vemos e nos relacionamos com os outros seres humanos. A televisão, os computadores, os celulares, as vacinas, os antibióticos e outros fármacos e a nanotecnologia são alguns dos frutos desse progresso tecnológico e se originaram de pesquisas científicas básicas.

Contudo, o século passado trouxe consigo também uma série de ameaças ao bem-estar de nossa espécie e do nosso planeta. A corrida armamentista, as armas atômicas, as guerras biológicas, os genocídios, a poluição ambiental, a destruição de florestas e a pobreza e a fome em várias partes do mundo são alguns exemplos dos perigos surgidos durante as últimas décadas e que, muitas vezes, se originaram após o emprego eticamente incorreto de pesquisas e desenvolvimentos científicos.

Portanto, é normal que nos sintamos apreensivos em relação ao mundo que reservamos para nossos filhos e netos. Qual seria o caminho a seguir para que possamos usufruir dos benefícios dessas tecnologias sem que sejamos atingidos pelos horrores de sua utilização incorreta? Quais seriam os limites bioéticos para o progresso científico e quais instrumentos temos atualmente para evitar que pressões econômicas ou totalitárias desviem os rumos da ciência?

Conhecimento compartilhado
Hoje vivemos na sociedade do conhecimento e a transferência de tecnologia é algo comum e mesmo impossível de ser freada. Um exemplo é o compartilhamento gratuito de informações e material diverso pela internet. Esse processo, desde que corretamente usado e regulamentado, tem sido de enorme importância para toda a humanidade, pois nunca o conhecimento esteve tão disponível para todos.

Em certo sentido, o mesmo ocorre em relação à produção científica. Cada vez mais países têm se dado conta de que o desenvolvimento tecnológico é uma condição diretamente associada com o progresso e o bem-estar de sua população e somente com o investimento em pesquisas cientificas é que se conseguirá alcançar um desenvolvimento econômico sustentável. O enorme crescimento do número de publicações científicas e de artigos produzidos em diversos países demonstra a preocupação atual com esse tema.

Contudo, muitas vezes, as pesquisas científicas tomam rumos diferentes daqueles que deveriam nortear esse tipo de atividade. Vários fatores estão associados com esse processo: a pressão por resultados capazes de garantir a obtenção de verbas – governamentais ou privadas – que sustentem os laboratórios e mão-de-obra qualificada, a competição acirrada por resultados relevantes que ocorre no meio científico – aliada à vaidade de muitos pesquisadores – e, muitas vezes, uma carência de mecanismos que definam quais parâmetros devem nortear as linhas de pesquisa de uma dada instituição. Esses fatores acabam por causar dois graves problemas comuns na atualidade: a fraude científica e o desrespeito aos limites éticos na experimentação científica.

O cientista sul-coreano Woo-Suk Hwang se envolveu em um escândalo em 2006, após ter falsificado os resultados de seus trabalhos científicos e violado as leis de bioética de seu país. (Foto: Robson Sampaio).

O caso Woo-Suk Hwang
O escândalo que envolveu o cientista sul-coreano Woo-Suk Hwang é um exemplo recente da aliança entre os interesses dos governos e da sociedade para se obter resultados científicos imediatos e impactantes e de indivíduos capazes de ir além dos princípios éticos para alcançar fama e dinheiro.

Hwang tornou-se mundialmente famoso após ter publicado, em junho de 2005 na revista científica Science, resultados de pesquisas que indicavam que ele e sua equipe haviam produzido 11 linhas de células-tronco clonadas através de uma nova técnica, que representaria um avanço em direção à oferta de curas personalizadas, pois usava tecidos cultivados a partir de células-tronco embrionárias do próprio indivíduo.

Considerado um herói na Coréia do Sul e agraciado com o título de “cientista ilustre do país” e “Pesquisador Líder de 2005” pela revista Scientific American, Hwang recebeu o equivalente a US$ 42,2 milhões do governo e US$ 4,35 milhões de fundações privadas para as suas pesquisas.

Contudo, o pesquisador caiu em desgraça em janeiro de 2006, quando se descobriu que ele havia falsificado os resultados de seus trabalhos científicos e comprado óvulos humanos de doadoras, o que viola as leis de bioética de seu país. Além disso, Hwang foi acusado de ter desviado parte dos recursos recebidos – inclusive para o pagamento de propina a políticos e funcionários que o ajudaram na concessão dos recursos.

O caso Hwang fez com que os limites da ciência e os critérios para a avaliação de resultados de pesquisas científicas fossem questionados e profundamente discutidos. Na época, o fato de uma das mais importantes revistas científicas do mundo ter sido totalmente enganada por alguém disposto a engendrar uma farsa causou espanto e suscitou uma discussão sobre as falhas no processo de avaliação da qualidade e da confiabilidade dos resultados científicos.

Mundialmente, os métodos de avaliação dos artigos a serem publicados baseiam-se na revisão por pares, por meio da definição de um grupo de assessores envolvidos com a mesma linha de pesquisa a ser analisada. Esses cientistas devem avaliar a qualidade, as falhas e a confiabilidade das informações prestadas. Contudo, parte-se sempre do princípio de que os resultados expressos são fidedignos e, por isso, há sempre a possibilidade de que indivíduos mal intencionados possam tentar cometer fraudes. Hwang, por exemplo, falsificou as fotos das linhagens clonadas e os testes que comprovavam o sucesso de seus experimentos.

Fraude X uso incorreto
Certamente, a fraude de Hwang não foi um caso isolado. Mas ela representa algo que, mais cedo ou mais tarde, acabaria por ser descoberto e desmascarado pela comunidade científica. Contudo, um fato muito mais grave é o emprego do conhecimento e das metodologias científicas para se criar algo que possa colocar em risco a saúde e o bem-estar da humanidade e do nosso planeta. 

Colônias de antraz resultantes do atentado de Kameido (Tóquio, Japão) em 1993. (Foto: Wikimedia).

Hoje, indivíduos mal intencionados, organizações criminosas, terroristas e mesmo governos totalitários podem com certa facilidade produzir armas de destruição em massa em laboratório e causar a morte de centenas de indivíduos apenas com um frasco contendo gás sarin ou bacilos antraz, por exemplo. Além disso, há ainda em nossas sociedades um predomínio de pressões sobre o desenvolvimento do processo científico que, muitas vezes, acabam fazendo com que sejam desenvolvidas iniciativas que representem benefícios econômicos imediatos mas que podem gerar riscos ambientais ou para a saúde humana.

A sociedade tem papel preponderante para evitar os desvios e os usos incorretos da ciência. Para isso, deve exigir que sejam conduzidas análises detalhadas das pesquisas a serem realizadas por meio da constituição de comissões de ética isentas, formadas por indivíduos com conhecimento técnico adequado. Pelo seu lado, as comissões de ética devem ser capazes de interagir com a sociedade que representam e ser porta-voz dos interesses legítimos da coletividade e dos setores menos favorecidos da população.

Além disso, a sociedade deve ser corretamente informada dos resultados, da importância e das conseqüências das pesquisas que estão sendo desenvolvidas. Assim, se evitarão absurdos como a proibição do uso de cobaias em pesquisas científicas, como ocorreu recentemente em Florianópolis (Santa Catarina).

Portanto, somente quando nós, cientistas, formos capazes de encurtar a distância entre o meio acadêmico e os anseios e as necessidades da sociedade, e quando esta for capaz de corretamente exigir e fiscalizar para que sejam cumpridos os princípios éticos que norteiam a atividade científica, poderemos nos assegurar de que nossos filhos e netos terão um mundo melhor para viver. Apesar de atualmente esses temas serem difíceis de ser alcançados, são meus pedidos para esse ano novo e para os próximos que virão!

Jerry Carvalho Borges
Colunista da CH On-line 
04/01/2008

SUGESTÕES PARA LEITURA
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