Nenhum historiador, em sã consciência, repetiria a velha máxima de que a história se repete. Mas às vezes é difícil resistir.
O caso é o seguinte: foi apresentado ao Senado, em junho passado, o novo Código de Processo Civil (projeto de lei 166), cujo artigo 967 pretende autorizar a eliminação completa de processos findos e arquivados há mais de cinco anos.
O artigo ressuscita uma antiga determinação do artigo 1.215 do Código Civil de 1973, que foi revogado depois de muitos protestos por parte da comunidade acadêmica. E ainda segue na mesma direção da lei 7.627, de 1987, que também autoriza a destruição de processos trabalhistas findos há mais de cinco anos.
Muitos têm se manifestado contra a medida, alegando que o texto é, no mínimo, inconstitucional, pois fere o direito de acesso da população a informações contidas nos processos (e necessárias para além dos cinco anos estabelecidos na proposta).
Além disso, também argumentam que o artigo representa um atentado ao patrimônio público nacional, já que esses processos contêm informações preciosas a respeito da história do país. A coluna deste mês faz coro a essas vozes.
A quem compete a decisão de queimar os documentos?
Vejamos o artigo. Em um tom quase sádico, nele propõe-se que os documentos que não tenham valor histórico sejam “eliminados por incineração, destruição mecânica ou por outro meio adequado”. Como saber quais os documentos que têm e os que não têm valor histórico? Pela proposta, o julgamento caberia à “autoridade competente”.
Aqui começam os problemas, que podem ser assim resumidos: não há meio adequado de eliminação de autos, simplesmente porque eles não devem ser eliminados. E eles não devem ser eliminados porque não existem processos que não tenham valor histórico.
Processos judiciais vêm sendo constantemente usados como fonte para a pesquisa histórica, seja como forma de compreender melhor as relações entre os agentes sociais em outra época ou sociedade, seja para estudar a própria Justiça e seus agentes em diversas temporalidades.
Desde o início da década de 1980, em pleno clima de ebulição do debate político brasileiro, historiadores começaram a se debruçar sobre os processos judiciais, interessados em recuperar o cotidiano dos trabalhadores, seus valores e suas formas de conduta.
E por quê?
Porque em um processo encontramos as questões que vivia a população da época, lemos seus testemunhos, conhecemos seus modos de vida, seus hábitos e, na medida do possível, seus anseios. Conhecemos relações de compadrio, parentesco, amizade, vizinhança. Sabemos dos conflitos e das contendas.
Mas os personagens principais desses processos são pessoas de cuja existência jamais saberíamos se os autos não tivessem sido preservados, arquivados e disponibilizados para consulta pública. Resumindo, é a experiência humana, em toda a sua variedade e complexidade, o que nos interessa. E para esta, não há hierarquia possível.
Por que não queimar arquivos
Vai aqui só um exemplo, meu caso favorito. Trata-se de uma ação cível de 1814, na qual a escrava Liberata iniciou um processo contra seu senhor. Liberata era a autora, seu senhor era o réu. Ela argumentava ter razões fortes para reivindicar sua liberdade. O caso acabou envolvendo seus filhos e outros senhores da região do Desterro, atual Florianópolis.
Liberata ficou livre, seus filhos também. Estes, vinte anos depois do início da ação, conseguiram se livrar da reescravização. (Quem quiser ler a história com detalhes, um verdadeiro roteiro de cinema, pode acessar a versão digital do livro Liberata: a lei da ambiguidade na Biblioteca Virtual de Ciências Humanas [PDF]).
Como esta, existem outras quatrocentas ações de escravos que procuraram a Justiça nos séculos 18 e 19 para processar seus senhores apenas na Corte de Apelação do Rio de Janeiro, cujos autos estão arquivados no Arquivo Nacional.
Onde estaria a história de Liberata se coubesse a alguma autoridade, por mais competente que fosse, julgar se ela tinha valor histórico? No lixo ou na fogueira.
Em tempo: O Centro de Pesquisa em História Social da Cultura (Cecult) da Unicamp disponibilizou vários textos sobre o uso de processos judiciais na pesquisa histórica. Capitaneada por alguns de seus membros, a proposta de emenda à redação do artigo [PDF] foi enviada ao Senado, e um abaixo-assinado está sendo organizado pela Associação Nacional dos Professores de História (ANPUH).
Keila Grinberg
Departamento de História
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro