A galinha, a filosofia e a evolução

 

Uma das palavras mais preciosas para quem milita no mercado das idéias e no campo aberto do conhecimento é “academia”. As academias são entidades de elite que reúnem os maiores expoentes de um campo de atividade intelectual científica ou artística, eleitos pelos seus pares. Também falamos em “comunidade acadêmica” para nos referir às universidades e ao conjunto de professores e pesquisadores que se dedicam à produção e propagação do saber. Assim, vale a pena discutir as origens da palavra, que remontam à Grécia antiga.

A Academia (Akademeia) era um arvoredo localizado na estrada que saía do portão ocidental de Atenas, às margens do rio Cefiso. Em priscas e mitológicas eras, essas terras haviam pertencido a um cidadão chamado Academos – daí o nome do local. Academos ajudou os gêmeos Castor e Pólux, filhos de Zeus com Leda, a libertar a belíssima Helena (a mesma que mais tarde seria o pivô da guerra de Tróia), que tinha sido raptada por Teseu e levada para Ática.

Platão e seus alunos na Academia. Desenho feito a partir de um óleo do pintor sueco Carl Johan Wahlbom. A galinha depenada por Diógenes não aparece na ilustração.

Em recompensa por sua ajuda, Zeus deu a Academos o direito de falar o que bem quisesse dentro de sua propriedade sem ser castigado, mesmo que isso pudesse ofender os próprios deuses. Inspirados por essa encantadora lenda – a primeira alegoria da liberdade de expressão na história ocidental –, os cidadãos da Atenas de Péricles costumavam reunir-se na Akademeia para debater livremente assuntos importantes da época.

Lá, Platão (427-347 a.C.) fundou a sua escola de filosofia, que adotou o nome do parque. A instituição, que continuou a funcionar no mesmo lugar por 900 anos após a morte de Platão, tornou-se o berço do racionalismo, do pensamento científico e de alguns dos nossos mais preciosos conceitos sobre justiça e liberdade.

Pois bem: um belo dia, Platão, reunido com seus alunos na Academia, resolveu definir o ser humano como “um bípede implume”. Imediatamente, o cínico Diógenes (~412-323 a.C.), que tinha um penchant para o dramático, pegou uma galinha, removeu suas penas e a apresentou à turma, dizendo com ironia: “eis o homem de Platão”.

A partir desse momento os galináceos se integraram irreversivelmente à filosofia ocidental, tornando-se um importante protagonista do seu desenvolvimento.

Aristóteles, a galinha e o ovo
O filósofo Aristóteles (384-322 a.C.), discípulo de Platão, foi o primeiro a registrar sua perplexidade ante à dúvida do que veio primeiro, a galinha ou o ovo. Ele escreveu em sua Historia Animalum: “Se existiu um primeiro homem, ele deve ter nascido sem pai nem mãe – o que é repugnante para a natureza. Pois não pode ter havido um primeiro ovo para dar origem aos pássaros, nem pode ter havido um primeiro pássaro que deu origem aos ovos, pois um pássaro vem de um ovo”.

“Mãos desenhando” (Drawing hands), gravura do artista gráfico holandês Maurits Escher (1898-1972) ilustrando conceitos de auto-referência e de alça estranha. Adicionalmente, as mãos passam das duas dimensões do papel para as três dimensões da realidade concreta. Podemos lembrar aqui que, no processo de expressão gênica (que é uma alça estranha), há um ganho ainda mais drástico de dimensões, pois usamos o código linear unidimensional do DNA para produzir proteínas com uma estrutura tridimensional.

A partir daí a imagem da galinha e do ovo tornou-se a referência padrão em filosofia e mesmo no linguajar do dia-a-dia para se referir à futilidade de se tentar resolver dilemas de causas e conseqüências circulares. Esses dilemas envolvem auto-referência e se relacionam com o conceito de “alça estranha” (strange loop).

Uma alça estranha emerge quando, ao nos movermos para baixo ou para cima em um sistema hierárquico, nos encontramos de volta ao lugar no qual começamos (ver figura). Esse conceito foi proposto e magistralmente discutido pelo informata americano Douglas Hofstadter (1945 -) no seu maravilhoso livro Gödel, Escher, Bach (que ganhou o Prêmio Pulitzer em 1980) e, mais recentemente, no livro de 2007 Eu sou uma alça estranha (no original, I am a strange loop).

Um exemplo de uma alça estranha é a rede informacional criada pelo DNA e pelas enzimas. O DNA contém o código para a síntese das enzimas, que, por sua vez, são indispensáveis para a replicação e transcrição do DNA.

Deixando intelectualismos de lado, devemos nos lembrar que o problema da galinha e do ovo foi colocado por Aristóteles em uma perspectiva fundamentalmente evolucionária, da origem de uma espécie. Para nós, que vivemos em uma época pós-darwiniana, não há dilema algum.

Antes de se tornar uma galinha (Gallus gallus), o animal tem necessariamente de ter sido um embrião de galinha, com genoma de galinha, que forçosamente deve ter se desenvolvido em um ovo que, contendo um embrião de galinha era, ipso facto, um ovo de galinha. Q.E.D.

Obviamente existe nesse raciocínio a premissa fundamental de que o ovo deve ser definido pelo embrião mutante contido nele e não pelo animal que o pôs, que neste caso teria de ser um antecessor evolucionário de Gallus gallus.

Galinhas e estradas

Uma galinha flagrada no momento em que atravessava a estrada (reprodução).

O dilema do ovo nos remete a uma brincadeira intelectual que também envolve a mesma ave. Por que a galinha atravessou a estrada? Este é um jogo que desafia a imaginação de quem é perguntado e tem de elaborar uma resposta original. A Wikipédia traça as suas origens a um artigo que apareceu em 1847 no The Knickerbocker, revista mensal de Nova Iorque.

De qualquer maneira, circulam pela internet algumas contribuições muito inteligentes a essa brincadeira feitas ao longo do tempo. Vejamos algumas que considero excepcionais (para facilitar ao leitor a tarefa de captar o sentido completo das piadas, os nomes estão em hipertexto com links para as respectivas biografias na Wikipédia):

Aristóteles: Para concretizar seu potencial.
Epicuro: Por diversão.
Pirro, o cético: Que galinha? Que estrada?
Zenão de Eléia: Para provar que nunca conseguiria chegar ao outro lado.
Blaise Pascal: Quem sabe? O coração da galinha tem razões que a própria razão desconhece.
David Hume: Por costume e hábito.
Karl Marx: Foi uma inevitabilidade histórica.
Jean-Paul Sartre: A galinha define sua existência pela livre escolha de cruzar a estrada.
Karl Popper: Para falsificar a hipótese que galinhas não cruzam estradas.
Sigmund Freud: A preocupação com o fato de a galinha ter cruzado ou não a estrada é um sintoma de insegurança sexual.
Albert Einstein: Se a galinha cruzou a estrada ou a estrada se moveu sob a galinha, depende do observador.
Werner Heisenberg: Talvez a galinha tenha atravessado a estrada, talvez não.
Douglas Adams: Quarenta e dois.
Pierre de Fermat: O espaço que eu tenho aqui não dá para escrever a explicação.
Marcel Marceau:
Che Guevara: Hay que cruzar la carretera, pero sin jamás perder la ternura.
Hamlet: Esta não é a questão.

Podemos agora arriscar algumas respostas evolucionárias, com links para colunas passadas:

Fundamentalista darwiniano: Ao longo do tempo, as galinhas foram geneticamente selecionadas para cruzar estradas.
Stephen Jay Gould: Por contingência.
Motoo Kimura: Neutramente, por variação estocástica – a galinha estava à deriva! 


Sergio Danilo Pena
Professor Titular do Departamento de Bioquímica e Imunologia
Universidade Federal de Minas Gerais
12/09/2008