A grande família

 
 

Nefertiti, rainha do Egito antigo circa 1350 a.C., esposa de Amenhotep IV (mais tarde Akhenaton), e Julio César (100 a.C. – 44 a.C.), ditador de Roma, dois antepassados de todos nós.

James Watson começa seu livro sobre a descoberta da estrutura do DNA, A dupla hélice , com uma sentença que ficou famosa: “Nunca vi Francis Crick em uma disposição modesta”. Considero a modéstia uma virtude questionável. Winston Churchill certa vez sentenciou a respeito de um adversário político elogiado por ser modesto: “Mas ele certamente tem muitos bons motivos para ser modesto…”. Não me considero nem procuro ser modesto e pelo menos isto tenho em comum com o Crick. Mas quando menciono que sou descendente direto da rainha Nefertiti do Egito, do profeta Maomé, de Julio César e do imperador Carlos Magno, a tendência é acharem que estou tendo delírios de grandeza.

Se me perguntam como eu sei, respondo que é fácil provar com a matemática. Aí, então, as pessoas ficam mais confusas ainda. Geralmente demonstramos relações de ancestralidade por meio de heredogramas, árvores genealógicas ou, mais recentemente, com testes de DNA , mas poucos usam a matemática nesse contexto. Na coluna deste mês farei exatamente isto, comprovando que, se o Código Da Vinci fosse verdade e não ficção e se Jesus Cristo realmente tivesse tido filhos com Maria Madalena, ele também seria meu antepassado!

Como sei que biólogos são alérgicos a números, alguns correndo risco de reações anafiláticas à simples visão de um símbolo de logaritmo ou de integral, vou começar de mansinho, sumarizando um conto de Malba Tahan, nom de plume do matemático brasileiro Júlio César de Mello e Souza (clique aqui para ler a versão completa):

Em um reino muito distante um jovem ensinou o jogo de xadrez ao rei que, satisfeito, prometeu recompensá-lo com a riqueza que ele escolhesse. O jovem não quis ouro nem prata – apenas trigo. Ele pediu ao rei que colocasse na primeira casa do tabuleiro de xadrez um grão de trigo, na segunda casa dois grãos, na terceira casa quatro grãos e assim por diante, dobrando sempre, até chegar à 64ª casa. Comovido com a modéstia do pedido do jovem, o rei mandou que ele fosse atendido imediatamente. Qual não foi o seu susto ao descobrir que todo o trigo do reino não seria suficiente! Matematicamente sabemos que seriam necessários 18.446.744.073.709.551.615 grãos, o que é trigo pra chuchu! Tal é a natureza da função exponencial: as quantidades aumentam muito rapidamente.

Mas o que tem o xadrez das Arábias a ver com ancestralidade? Tudo! Nós temos dois pais, quatro avós, oito bisavós, 16 trisavós, 32 tetravós etc. O número de antepassados cresce exponencialmente, de maneira muito rápida. Vinte gerações atrás (400 anos, se considerarmos 20 anos por geração) eu deveria ter um milhão de antepassados. Há meros 600 anos (30 gerações) eu deveria ter um bilhão e, há 800 anos, um trilhão de antepassados!!! Nessa época, porém, estima-se que a população mundial era de cerca de 260 milhões de pessoas, não de um trilhão! Como explicar essa discrepância?

Todos diferentes, mas todos parentes
Se a matemática aponta que eu tinha um trilhão de antepassados há 800 anos, isso significa que, no ano 1207, as 260 milhões de pessoas vivas tinham de preencher todas as vagas de meus antepassados. Obviamente, então, meus ancestrais de 1207 não podiam ser todos pessoas diferentes! No meu heredograma, alguns nomes vão ter de aparecer duas, três ou mesmo centenas de vezes. Significaria isso que eu sou descendente de todo mundo que vivia em 1207?

Não, por duas razões. A primeira é que nem todos que viviam em 1207 têm descendentes na Terra hoje. A segunda é que seria difícil para algumas dessas pessoas serem meus ancestrais por razões de localização geográfica (por exemplo, é muito pouco provável, embora não impossível, que asiáticos como Confúcio ou Genghis Khan sejam meus antepassados). Excluindo tais exceções, todas as pessoas que viviam na Europa, Ásia central, norte da África, Oriente Médio e Américas em 1207 são certamente meus antepassados.

O grande geneticista Susumu Ohno (1928-2000), que foi o primeiro a demonstrar, em 1956, que o corpúsculo de Barr era um cromossomo X condensado. Mais tarde, ele foi responsável pela criação de conceitos seminais em evolução molecular, entre os quais o da evolução por duplicação gênica.

O grande geneticista nipo-americano Susumu Ohno (1928-2000) mostrou em elegante artigo que a principal razão do número de antepassados diferentes ser menor do que o esperado de acordo com a função exponencial é a consangüinidade entre eles. Ohno demonstrou que existe uma geração no passado de cada um de nós (que ele chama de AN SA, isto é, “ancestralidade saturada”) que abrange todos os adultos evolutivamente fecundos, responsáveis por linhagens familiares que se estendem até o dia de hoje.

 

Em gerações anteriores à AN SA, o número de ancestrais de uma dada pessoa diminui progressivamente, no que tem sido chamado de “colapso do heredograma”. Mas o importante de se ressaltar é que todos os antepassados dos indivíduos evolutivamente fecundos da geração AN SA são também automaticamente nossos antepassados.

 

Assim, quando digo que sou descendente de Nefertiti, Maomé, Julio César e Carlos Magno, não estou “surtando” e sim fazendo uma constatação matemática. Mas geralmente não faço muito alarde do fato de que também sou descendente de ladrões, assassinos, vigaristas, prostitutas, lavadeiras, camponeses, soldados, sapateiros, alfaiates e, inevitavelmente, de alguns clérigos.

 

Um corolário do fato de eu ser descendente de todas as pessoas que existiram em 1207 é que sou parente de praticamente todas as pessoas que vivem no mundo hoje. Mas isso não se aplica somente a mim, como também a você, leitor, “ – mon semblable, – mon frère ”, nas palavras do poeta francês Charles Baudelaire (1821-1867), concluindo, em outro contexto , sermos todos semelhantes, todos irmãos. Estima-se que praticamente toda a população da Terra seja prima em um grau inferior ao 50º. Em outras palavras, toda a humanidade é uma grande família!

 

O genoma mosaico

 

Assim, quando examino meu vínculo genético com outro indivíduo qualquer escolhido ao acaso (vamos inventar para este fim o Manuel da Silva, que mora em Lisboa), posso ter certeza de que ele e eu temos vários antepassados em comum. A questão interessante é descobrir há quanto tempo viveram esses antepassados. Em genética evolucionária esse tempo, geralmente medido em gerações, é tecnicamente chamado de TACMR, ou seja, Tempo do Ancestral Comum Mais Recente.

 

Sabendo a distribuição da variabilidade e a taxa de mutação de um segmento de DNA genômico determinado na população é possível utilizar a chamada “análise da coalescente” para calcular o TACMR daquele segmento genômico entre eu e o Manuel da Silva de Lisboa ou entre duas pessoas quaisquer, ou mesmo de um conjunto maior de indivíduos. Mas não se pode calcular o TACMR para o genoma como um todo, apenas para segmentos bem definidos. A razão disso é que genomas humanos não são genealogicamente uniformes, mas mosaicos de genealogias. Vou explicar isso de uma maneira bem simples.

 

Existe um componente do meu genoma, chamado DNA mitocondrial (mtDNA), que herdei em bloco apenas de minha mãe. Ela recebeu o seu mtDNA em bloco também de sua mãe, que por sua vez herdou de sua mãe, que por sua vez herdou de sua mãe etc. Assim, o DNA mitocondrial é um marcador de linhagem materna (matrilinhagem). Existe um outro componente do meu genoma – o cromossomo Y – que herdei em bloco apenas de meu pai. Ele recebeu o seu Y também em bloco de seu pai, que por sua vez herdou de seu pai, que por sua vez herdou de seu pai etc. O cromossomo Y é um marcador de linhagem paterna (patrilinhagem).

 

Capa do livro Homo brasilis , organizado pelo colunista, onde se discute o “Retrato molecular do Brasil”. O volume foi lançado pela Editora FUNPEC-RP (http://www.funpecrp.com.br)

Por estudos de ancestralidade que podem ser realizados por meio do DNA , fiquei sabendo que meu DNA mitocondrial tem origem ameríndia, enquanto meu cromossomo Y tem origem européia. De maneira tipicamente brasileira (leia aqui sobre o Retrato molecular do Brasil ), sou um mosaico de ancestralidades. Ao comparar meu mtDNA e cromossomo Y com os correspondentes de Manuel da Silva em Lisboa, irei observar um TACMR muito mais recente para o cromossomo Y do que para o mtDNA. E para o resto do genoma?

 

Nos últimos cinco anos foi mostrado que o genoma humano é constituído de um grande número (da ordem de 300.000) de pequenos blocos (tecnicamente chamados de blocos haplotípicos) que se são transmitidos intactos, sem recombinação, de geração em geração. Cada um desses blocos comporta-se de maneira análoga ao DNA mitocondrial e ao DNA do cromossomo Y, tendo padrão de variabilidade e origem genealógica próprios (para saber mais clique aqui ). A diferença é que recebemos duas cópias (uma paterna e uma materna) de cada um desses blocos, ou seja, temos um total de cerca de 600.000 deles.

 

Assim, quando comparamos Sergio Pena e Manuel da Silva, não encontraremos apenas um TACMR para o mtDNA e um para o cromossomo Y. De fato existirão 1.200.000 TACMRs, um para cada combinação de blocos haplotípicos homólogos! Se fosse viável definir cada um desses TACMRs, eu teria a especificação completa do meu vínculo genético com o Manuel. Observe-se que estabelecer esses TACMRs seria mais eficiente na especificação do nosso relacionamento genético do que seqüenciar as 3 bilhões de letrinhas (As, Cs, Gs e Ts) nos nossos genomas.

 

Uma espécie frágil

 

Podemos também generalizar essa operação, estendendo-a aos meus outros seis bilhões de parentes vivendo na Terra hoje. Teríamos uma matriz de TACMRs com o modesto tamanho de 6 bilhões x 1,2 milhões (7,2 x 10 15 células!). Essa matriz conteria toda a informação sobre o meu passado evolucionário, provavelmente a partir dos primeiros humanos modernos ou mesmo antes. Uma supermatriz tridimensional, de 6 bilhões x 6 bilhões x 1,2 milhões de células, conteria a história evolucionária de toda a humanidade, a nossa grande família!

 

Vou terminar com uma citação poeticamente melancólica do livro The fragile species , do grande médico escritor Lewis Thomas (1913-1993), que na década de 1970 assinou uma coluna semanal no periódico New England Journal of Medicine intitulada “Notes of a Biology Watcher” (‘Anotações de um Observador da Biologia’):

 

”Sou membro de uma espécie frágil, ainda nova na Terra, as criaturas mais novas em qualquer escala, presentes aqui há apenas alguns momentos na perspectiva evolucionária de tempo, uma espécie juvenil, a criança das espécies […] Este é um lugar muito grande, e eu não sei como ele funciona.”

Sergio Danilo Pena

Professor Titular do Departamento de Bioquímica e Imunologia

Universidade Federal de Minas Gerais

13/04/2007