A influência do olhar

 

Nossa compreensão do mundo é feita a partir da observação. Cada indivíduo, através dos sentidos, percebe a sua maneira o meio no qual vive. Costumamos confiar mais na visão, pois quando observamos alguma coisa a compreendemos melhor. Uma imagem, como diz o ditado, pode “valer por mil palavras”.

Desde os primórdios da humanidade, olhamos ao nosso redor e elaboramos idéias e modelos para explicar o que nos cerca. Admiramos muitas coisas por sua beleza e formas e outras tentamos simplesmente entender. Esses atos corriqueiros, quando são transformados em construções elaboradas do nosso pensamento, criam idéias e conceitos que podem transcender o tempo e o espaço.

A tela Catskill Mountain House – Os quatro elementos , pintada em 1843-4 pelo inglês Thomas Cole (1801-1848), traz uma alegoria da terra, do fogo, da água e do ar – quatro dos cinco elementos constituintes do universo segundo Aristóteles (o quinto era o éter, que formaria estrelas e planetas e preencheria o espaço).

Um exemplo dessa situação é o conjunto de idéias construídas por talvez uma das mentes mais brilhantes de todos os tempos. Refiro-me ao filósofo grego Aristóteles (384-322 a.C.) que, além de ter sido o tutor de Alexandre, o Grande, foi um dos pensadores que mais influenciou a humanidade. Como muitos dos filósofos gregos, ele prezava por observar detalhadamente a natureza. A partir das suas reflexões, elaborou todo um sistema de idéias, construídas com lógica e coerência, para explicar o que observava. Há quase 2.400 anos ele criou, entre outras coisas, uma “física” e uma “biologia” para interpretar o que seu olhar podia vislumbrar.

Aristóteles explicou, por exemplo, a queda dos corpos a partir de conceitos que ele considerava fundamentais. Para ele, o universo era constituído de cinco elementos: água, ar, fogo, terra e éter. Os quatro primeiros formariam tudo o que existe em nosso mundo e o quinto existiria apenas no céu, responsável por constituir estrelas e planetas e preencher todo o espaço.

Cada elemento teria seu “lugar natural”. A terra estaria no centro do universo. Em seguida teríamos a água e, acima dela, o ar e depois o fogo. Um elemento densamente formado por terra, como uma pedra, cai em direção ao centro do universo, voltando para o seu lugar natural. Bolhas de ar em um líquido movem-se para cima. Dessa maneira, Aristóteles compreendeu que os objetos mais pesados tenderiam a voltar mais rapidamente para o seu “lugar natural” do que os mais leves.

Essa noção é ainda muito comum para a maioria das pessoas. A experiência cotidiana é, na maioria das vezes, compatível com a explicação de Aristóteles. Se soltarmos simultaneamente uma folha de papel e uma pedra, verificaremos, com certeza, que a pedra chegará primeiro ao chão. Entretanto, se amassarmos a folha e repetirmos a experiência, veremos que elas chegarão praticamente juntas ao chão. A folha e a pedra continuam tendo exatamente o mesmo peso: o que mudou foi a forma do papel. Hoje sabemos que o ar oferece resistência ao movimento, em função de vários fatores, em particular, da geometria do objeto. Automóveis e aviões são especialmente projetados para otimizar a resistência do ar em seus movimentos.

A explicação de Aristóteles de por que os corpos caem não reflete o que sabemos nos dias de hoje. Os quatro elementos propostos por ele não são elementos fundamentais, e sim compostos de outros mais fundamentais, os átomos.

Galileu e a ciência moderna

Ao soltar um martelo e uma pena na Lua em 1973, o astronauta David Scott confirmou que ambos atingiram juntos a superfície (foto: Nasa).

O cientista italiano Galileu Galilei (1564-1642), um dos maiores pensadores de todos os tempos, mostrou que os corpos caem todos com a mesma aceleração, ou seja, se minimizarmos a resistência do ar, tanto uma pena como um martelo chegariam juntos à superfície, como o astronauta David Scott confirmou em experimento feito na Lua em 1973, durante a missão Apollo 15.

A ciência moderna, de uma forma resumida, é baseada na observação, na experimentação e na construção de modelos que expliquem a realidade. Galileu no século 16 e 17 ajudou a desenvolver essa noção para mudar alguns conceitos, em particular muitos daqueles defendidos pelo próprio Aristóteles. O fato de a Terra girar em torno de si a cada 24 horas e do Sol a cada 365 dias, por exemplo, levou muito tempo para ser aceito. Nossa observação cotidiana não nos dá qualquer pista de que esses movimentos acontecem. Pelo contrário, vemos o Sol nascer em uma dada região do horizonte e se pôr do outro lado. Ninguém tem a sensação de estar sobre um objeto que gira em torno de si com a velocidade de aproximadamente 1.700 km/h.

Para mudar esse paradigma, foi necessário muito tempo. Galileu defendeu ferrenhamente o chamado modelo heliocêntrico (com o Sol no centro) proposto pelo polonês Nicolau Copérnico (1473-1543). Galileu, utilizando uma pequena luneta astronômica e enxergando de maneira diferente as imagens que obtinha, conseguiu expandir a compreensão do cosmos. Ele observou que existiam quatro luas orbitando o planeta Júpiter (hoje sabemos que há mais de 60), mostrando que os objetos celestes giravam também em torno de outros corpos. Além disso, ele também constatou que os planetas Mercúrio e Vênus exibiam fases semelhantes às da Lua, que somente podem ser explicadas se considerarmos que esses planetas giram em torno do Sol. Dessa forma, ele foi construindo uma série de argumentos para justificar que a Terra e os demais planetas do Sistema Solar orbitavam o Sol e não a Terra.

Um outro olhar contribuiu de maneira decisiva para mudar a nossa visão do universo. O astrônomo dinamarquês Tycho Brahe (1546-1601) observou o céu por quase toda a sua vida sem o auxílio de uma luneta astronômica, que somente foi introduzida alguns anos após a sua morte por Galileu. Entretanto, Brahe conseguiu construir o mais moderno observatório a olho nu do seu tempo e acumulou dezenas de anos de observações sobre a trajetória dos planetas, em particular de Marte, que realiza um estranho movimento nos céus ao longo de seu percurso de aproximadamente dois anos.

Embora esse fato fosse conhecido até antes da época de Aristóteles, explicar esse movimento estava cada vez mais complicado, pois as novas e mais precisas observações feitas por Brahe mostravam que era insustentável a idéia de o Sol, as estrelas e os planetas girarem ao redor da Terra. Entretanto, Brahe não conseguiu explicar satisfatoriamente o que suas observações revelavam. Foi necessário, novamente, alguém com um olhar diferente para enxergar mais longe.

As leis de Kepler

O astrônomo alemão Johannes Kepler (1571-1630) descobriu as leis que regem a trajetória dos planetas no céu.

Nesse ponto da história entra um novo personagem: o astrônomo alemão Johannes Kepler (1571-1630). Ele trabalhava como assistente de Tycho Brahe e assumiu o cargo após sua morte. Olhando detalhadamente durante alguns anos os resultados de Brahe sobre a trajetória de Marte, Kepler desvendou o mistério do movimento planetário. Ele propôs três leis que permitiam explicar a trajetória dos planetas no céu de uma maneira nunca antes alcançada.

Kepler mostrou que as órbitas dos planetas não são circulares ao redor do Sol, como defendiam Copérnico e Galileu, mas elipses muito pouco alongadas. Percebeu também que, quanto mais próximo o planeta estava do Sol, mais rapidamente ele se movia e que, quanto mais se afastava, mais lento era seu movimento. Descobriu ainda uma relação entre a distância do planeta ao Sol e o período que ele gasta para realizar seu movimento (o cubo da distância dividido pelo quadrado do período é constante para qualquer planeta).

As leis de Kepler para as órbitas planetárias foram de fundamental importância para que outro grande nome da ciência explicasse a causa do movimento dos planetas ao redor do Sol. O inglês Isaac Newton (1643-1727) foi o propositor da força da gravidade e das leis da mecânica que explicam não somente o movimento dos planetas, mas por que os objetos caem com a mesma velocidade. Entretanto, a força gravitacional não é visível aos nossos olhos. Observamos seus efeitos e a partir deles conseguimos compreender sua natureza. Nesse caso, como escreveu o francês Saint-Exupéry em seu famoso livro O pequeno príncipe , “o essencial é invisível aos olhos…”

Nosso olhar para a natureza sempre permitirá diversas interpretações. Em particular, quando observamos de maneira mais profunda e transformamos aquilo que enxergamos em conhecimento, podemos ir além e perceber que existem coisas que nem os olhos vêem e nem o coração pode sentir, mas que a mente pode descobrir.

Adilson de Oliveira
Departamento de Física
Universidade Federal de São Carlos
17/08/2007