O improviso é uma característica determinante do jazz. O monitoramento do cérebro de músicos durante o improviso está ajudando a neurociência a entender a base fisiológica da criatividade.
Meu professor e amigo Leopoldo de Meis, hoje professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), sempre diz que toda atividade criativa – seja na ciência, na arte ou em qualquer outra ação humana – é função da intuição.
Esta pode ser definida como o clique evanescente que nos ilumina ocasionalmente, abrindo caminhos para a criação de um conceito científico novo, de uma representação artística original, ou simplesmente para a resposta a alguma pergunta complicada. A intuição seria algo surpreendente, livre, desprovido de lógica, surgido dos devaneios do pensamento, e resultaria em algo não convencional, além dos controles do que já é aceito e considerado “normal”.
Sendo assim tão livre, leve e solto, nem por isso o pensamento criativo deixa de ser um produto da função cerebral – e é, portanto, acessível à investigação dos neurocientistas. Pelo menos, essa é uma hipótese de trabalho suscetível a teste. Mas como algo tão efêmero e aleatório poderia ser objeto de pesquisa experimental? Como se poderia “flagrar” o cérebro em plena ação criativa?
A história da pintora norte-americana Anne Adams nos dá algumas pistas. Essa artista morreu em 2007 aos 67 anos, após uma longa doença neurodegenerativa que deve ter começado uns quinze anos antes – em 1997 ela já apresentava atrofia cerebral localizada na região de comando da fala, no hemisfério esquerdo. No início de sua carreira, Adams tinha um estilo realista e ingênuo, que se transformou subitamente em uma pintura abstrata, detalhista e muito original quando a doença ainda deveria estar começando, sem os sintomas que a levaram a perder completamente a capacidade de falar.
Bolero de Ravel pintado
Nessa ocasião, Anne Adams teve a idéia de transpor para a pintura a intrigante e famosa obra musical do compositor francês Maurice Ravel (1875-1937) – o Bolero. Surgiu um quadro que representa visualmente uma experiência auditiva inesquecível até para os que não a apreciam – a repetição compulsiva de uma mesma seqüência melódica em uma ascendente de intensidade e complexidade orquestral que termina em um clímax de enorme massa sonora.
O díptico à esquerda é Desvendando Bolero, pintado por Anne Adams em 1994, e o quadro à direita é Pi, de 1998. No díptico, cada compasso é representado por um quadrinho cuja altura indica o volume sonoro crescente da obra de Ravel. No quadro, o mosaico de quadrados coloridos codifica os decimais de π, mostrando a aleatoriedade da expansão decimal desse número irracional. Reproduzido de Seeley e colaboradores (2008).
Alguns anos depois, Anne Adams teve outro momento de grande criatividade e decidiu pintar um conceito abstrato, traduzindo em um enorme tabuleiro colorido a expansão decimal do número irracional π, que os matemáticos descrevem como a razão entre o perímetro e o diâmetro de uma circunferência.
O surto criativo da carreira de Anne Adams foi atribuído à degeneração no córtex pré-frontal pelos médicos que acompanharam o caso, liderados por William Seeley, da Universidade da Califórnia em São Francisco (EUA). Segundo eles, essa degeneração, que mais tarde causou a perda da fala, no início teria determinado a “desinibição” das regiões posteriores do córtex cerebral, onde ocorre a confluência das representações sensoriais.
A equipe de Seeley especulou que seria nessas regiões cerebrais posteriores que se estabeleceriam os pensamentos humanos mais complexos, capazes de associar sentidos diferentes e conceitos abstratos. No caso da pintora, essas regiões teriam sido liberadas dos controles executivos do cotidiano e deixadas ao sabor do seu devaneio criativo. Estaria aí o locus cerebral da criatividade?
O surto criativo dos músicos
Confesso que não me pareceu muito convincente a explicação de Seeley e seus colegas, até que topei com um achado mais forte e contundente sobre a base cerebral da criatividade. Trata-se de um trabalho experimental de raro cuidado, publicado recentemente por Charles Limb e Allen Braun, respectivamente dos Institutos Nacionais de Saúde e da Universidade Johns Hopkins, ambos nos Estados Unidos.
Limb e Braun estudaram seis músicos profissionais de jazz, empregando um equipamento e programas de neuroimagem por ressonância magnética capazes de revelar tanto as regiões cerebrais ativadas como as desativadas em uma dada ocasião. Os músicos foram monitorados durante performances que incluíam momentos de interpretação convencional memorizada e outros de livre improviso, como é característico do jazz.
Os músicos tocavam em um teclado eletrônico com som de piano, que possibilitava gravar o que produziam, e assim medir vários parâmetros quantitativos como o número, a abrangência e a ocorrência das notas que utilizavam. Essas medidas indicaram desde logo que não havia diferença quantitativa entre a interpretação memorizada e o improviso jazzístico. Os dados cerebrais, de saída, não podiam ser atribuídos a um maior esforço motor ou a um maior processamento sensorial.
Padrão bipolar
As regiões representadas em azul são áreas desativadas durante o improviso jazzístico, enquanto as regiões em tons de amarelo e laranja indicam as regiões mais ativas. Reproduzido de Limb e Braun (2008).
O mais relevante é que o cérebro dos músicos, durante o improviso, apresentou uma ampla região de desativação no chamado córtex pré-frontal, que fica bem no alto da testa, e ao mesmo tempo regiões muito ativas à frente e mais atrás. Um padrão bipolar para a mesma função.
Os resultados foram surpreendentes porque mostraram exatamente esse padrão bipolar: a desativação de importantes regiões cerebrais durante um momento de grande atividade mental e intensa riqueza criativa, ao lado de outras fortemente ativadas.
Os autores os interpretaram de modo compatível com as observações dos neurologistas que examinaram Anne Adams. As regiões desativadas coincidiram com aquelas atingidas pelas lesões no cérebro da pintora, e as áreas ativadas eram justamente as que participam, reconhecidamente, das funções de integração multissensorial esperadas durante a improvisação do jazz.
Que faz o córtex pré-frontal normalmente, e por que precisa ser desativado quando começamos um processo criativo? Tudo se encaixa. Essa região cerebral é a responsável pelo monitoramento cognitivo que analisa a cada momento a adequação de nossas ações ao ambiente. É ele também que planeja o que é coerente fazer a cada instante do presente. É ele, por fim, que conecta o que aconteceu há pouco com o que está acontecendo agora, e o que pode acontecer daqui a instantes – e nos orienta sobre o que devemos fazer para nos comportar nessa situação mutante.
De acordo com a hipótese derivada do caso Anne Adams e os dados de neuroimagem funcional obtidos durante a improvisação jazzística, a intuição criativa ocorre quando desativamos o córtex pré-frontal para deixar livres as regiões posteriores: livres dos ditames do cotidiano para o exercício puro e simples da criação.
A criatividade une os semelhantes
O entretítulo acima não é uma manifestação de falso moralismo. É que não posso resistir a revelar uma suprema coincidência, ao encerrar esta crônica. Tudo indica que Anne Adams desconhecia a biografia de Maurice Ravel quando pintou Desvendando Bolero. Não sabia que o compositor francês havia sofrido um mal desconhecido à sua época que lhe havia causado o mesmo e devastador sintoma: perda completa da fala.
A doença de Anne Adams teve um diagnóstico preciso por imagem e pela análise post mortem do cérebro: atrofia progressiva primária, uma doença neurodegenerativa rara. Hoje, podemos supor que a mesma doença tenha acometido Ravel. Que misteriosa motivação terá levado a pintora a inspirar-se justamente no compositor que tinha com ela essa dramática semelhança que os levou à morte?
SUGESTÕES PARA LEITURA
Seeley, W.W. (2008) Unravelling Boléro: progressive aphasia, transmodal creativity, and the right posterior neocortex. Brain 131:39-49.
Limb, C.J. e Braun, A.R. (2008) Neural substrates of spontaneous musical performance: An fMRI study of jazz improvisation. PloS One 3(2): e1679.
Roberto Lent
Professor de Neurociência
Instituto de Ciências Biomédicas
Universidade Federal do Rio de Janeiro
26/09/2008