Uma das mais importantes características humanas é a capacidade de nos comunicarmos, pois, por meio desse processo, a inteligência se manifesta. Existem evidências de que outros animais se comunicam entre si, como baleias e golfinhos; mas, até onde sabemos, somos os únicos seres do universo que expressam pensamentos de forma complexa por meio de sons, gestos, pinturas, escrita etc.
Em particular, no que se refere à comunicação oral, estima-se a existência de cerca de 7 mil idiomas. O mais falado no mundo é o mandarim, com mais de 1 bilhão e 300 milhões de falantes. A língua portuguesa, falada por quase 230 milhões de pessoas, está entre a quinta e a sexta posição.
Em cada idioma já foram expressas belíssimas ideias que ficaram eternizadas em diferentes obras literárias. A bela peça Hamlet, escrita em inglês por William Shakespeare, a envolvente narração em espanhol de Dom Quixote de la Mancha, feita por Miguel de Cervantes, e os grandiosos poemas épicos, como Os Lusíadas, de Luís de Camões (em português), e Divina Comédia, de Dante Alighieri (em italiano), são apenas alguns exemplos de grandes produções do pensamento humano. Nessas obras, encontramos a maneira como esses autores veem o mundo por meio de suas narrativas.
Da mesma forma, a ciência tem seu próprio ‘idioma’ para descrever a natureza. Em especial, a física tem uma maneira particular de narrar os fenômenos naturais. Essas narrativas acabam se modificando ao longo do tempo, assim como as próprias línguas, tanto pela evolução do pensamento como pelas descobertas de novos fenômenos, que, para serem explicados, levam a grandes revoluções no modo de pensar.
O alfabeto dos físicos
Toda língua moderna tem o seu alfabeto e as suas regras gramaticais, que nos permitem expressar as nossas ideias. Na física, a matemática é uma das maneiras usadas para expressar seus conceitos e teorias. Devido à sua estrutura lógica, a matemática garante a demonstração de determinados conceitos de modo absolutamente preciso e é capaz de levar a formas de pensamento que a nossa linguagem humana cotidiana não consegue expressar.
As representações matemáticas das teorias físicas podem ser muito complexas. Por exemplo, a teoria da relatividade geral e a física quântica, os dois atuais pilares da física, que começaram a ser elaborados a partir do começo do século 20, levaram à utilização de representações matemáticas pouco usuais até para os próprios físicos da época.
A teoria da relatividade geral, como foi discutido na última coluna, é uma teoria para explicar a gravitação na qual se considera que essa interação fundamental ocorre devido à curvatura do espaço-tempo provocada pela presença de matéria e energia. Para elaborar essa ideia, há 100 anos, Albert Einstein teve que usar representações matemáticas de espaços quadrimensionais curvos (três dimensões espaciais e uma temporal) na forma de tensores, que são entidades matemáticas que descrevem de maneira generalizada grandezas escalares, vetoriais e matriciais.
A equação fundamental da teoria da relatividade geral é descrita pelo tensor de Einstein, que relaciona a curvatura do espaço-tempo com a distribuição de matéria e energia. A partir dessa equação, é possível descrever a interação gravitacional entre planetas, estrelas e galáxias, bem como até a expansão do universo.
A física quântica também utiliza descrições sofisticadas das propriedades fundamentais da natureza. Os chamados fenômenos quânticos acontecem na escala atômica. Para descrevê-los, a física quântica teve que introduzir novos conceitos no linguajar da física, como os de quantização da energia, dualidade onda-partícula, entre outros.
A quantização da energia foi introduzida pelo físico alemão Max Planck em 1900 para descrever um fenômeno conhecido como radiação do corpo negro. Todo corpo aquecido emite radiação, que, dependendo da temperatura, fica na faixa do espectro eletromagnético visível, como é o caso da cor avermelhada que vemos em um pedaço de carvão em brasa. Essa emissão de radiação foi descrita por Planck considerando que os processos de emissão e absorção somente aconteciam de forma discreta, em múltiplos inteiros do produto de uma constante fundamental (conhecida como constante de Planck) pela frequência da radiação. Posteriormente, o conceito de quantização da energia também foi aplicado para explicar os processos de emissão e absorção de energia em átomos e moléculas.
Albert Einstein, em 1905, introduziu o conceito de fóton – as partículas de luz – para descrever o efeito fotoelétrico, segundo o qual certo material emite elétrons, produzindo uma corrente elétrica, quando incidem sobre ele determinadas faixas de frequência de luz. Assim como previa a fórmula de Planck, Einstein acreditava que a energia da radiação eletromagnética era também absorvida ou emitida. Posteriormente, esse conceito de que a luz não era uma onda, mas sim uma partícula, também foi usado na descrição da matéria, levando à afirmação de que os elétrons podem ter comportamento ondulatório ou corpuscular.
A profundidade da física quântica na descrição da natureza pode ser observada a partir da chamada equação de Dirac, por meio da qual foi possível relacionar os fenômenos quânticos e os chamados relativísticos, que consideram não apenas as propriedades quânticas da matéria, mas também seus efeitos em velocidades próximas à da luz. É como se essa e outras equações praticamente resumissem muitos aspectos fundamentais da natureza em uma única frase.
Regras ‘gramaticais’ básicas
Mas a física não é apenas a descrição da natureza a partir de equações matemáticas. Seu roteiro para explicar o universo também depende de princípios fundamentais aplicados a diversas situações. As teorias físicas têm como pano de fundo os chamados princípios de conservação, que são associados à conservação da energia, da quantidade de movimento, do momento angular, da carga elétrica, entre outros. Por exemplo, verifica-se que, em qualquer processo, a energia total é conservada, ou seja, nunca é criada ou destruída, mas pode ser transformada. Com base nessa ideia, foi possível elaborar diferentes descrições dos fenômenos físicos.
O físico e astrônomo italiano Galileu Galilei, um dos fundadores da física e da astronomia modernas e também um dos grandes defensores do método científico, disse: “o livro da natureza está escrito em caracteres matemáticos… sem um conhecimento dos mesmos, os homens não poderão compreendê-lo” (tradução livre). A afirmação reflete bem a percepção de que, para podermos expressar certas ideias e conceitos, é necessário conhecer de maneira adequada o idioma no qual eles estão escritos.
Nesse caso, a física, por meio da matemática, consegue descrever o nosso universo de modo fundamental, mesmo não respondendo a todas as perguntas. Ainda serão escritos muitos ‘poemas’ e ‘narrativas‘ (teorias) na física, por meio do seu ‘idioma’ (matemática), e eles continuarão nos encantando, assim como as grandes produções literárias.
Adilson de Oliveira
Departamento de Física
Universidade Federal de São Carlos