A longa caminhada do papel eletrônico

Imagine-se sentado em um banco de praça, quando alguém ao seu lado retira de um fino canudo uma folha retrátil e transparente de tamanho A4. De repente, letras e imagens aparecem naquela folha, como se fosse uma página impressa. O contraste e a visibilidade das letras em diferentes ângulos lembram uma folha de papel.

Isso ainda é uma cena de ficção. Você não encontra esse produto na loja da esquina, mas Epson, Fujitsu, HP, Hitachi, IBM, Kodak, Motorola, Philips, Pioneer, Samsung, Siemens, Sony e Xerox, para citar apenas empresas conhecidas do grande público, trabalham para que isso não demore a acontecer. O papel eletrônico – a folha transparente da cena imaginária – já existe em diversos produtos. Falta apenas ele aparecer no design imaginado acima e com um preço compatível com a renda de boa parte da população.

Nos laboratórios de pesquisa, os trabalhos que viabilizaram o papel eletrônico já têm uma longa história. Podemos dizer que a saga remonta aos anos 1950, quando propriedades elétricas foram descobertas em alguns polímeros e as primeiras imagens xerográficas foram obtidas com o processo conhecido como eletroforese. Na década seguinte, com a descoberta dos polímeros semicondutores, estava aberta a estrada para se chegar ao papel eletrônico.

Mas a evolução da ciência e da tecnologia não é assim tão certinha. Tropeços metodológicos e estratégias comerciais entortaram o rumo dessa história. Passados mais de 40 anos, ainda estamos à espera do papel eletrônico com as propriedades que teoricamente consideramos adequadas.

E quais são essas propriedades? Para se assemelhar ao papel impresso em funcionalidade e disponibilidade, o papel eletrônico deve ter bom contraste, de modo a ser lido até na claridade da luz solar. Isso implica que as imagens deverão ser visualizadas por reflexão da luz e não por transmissão, como ocorre nas usuais telas de computadores e de televisores. É claro que isso não impede que um fabricante possa fazer um papel eletrônico que emita luz, mas essa não é a alternativa que está fazendo a cabeça da indústria.

Assim como o papel convencional, de celulose, o eletrônico também deve ser flexível, de modo que possa ser encurvado e guardado em um canudo. Tem que apresentar baixo consumo de energia e, sobretudo, ter preço de venda compatível com o orçamento de grande parte da população. Ainda não se conseguiu um produto que atenda a todas essas exigências. Vejamos alguns dos caminhos seguidos pelos pesquisadores para chegar a elas.

Tinta e suporte

Folha enrolada de Gyricon, papel eletrônico desenvolvido pelo Centro de Pesquisa da Xerox. O dispositivo foi batizado a partir da expressão grega que significa “rotação de imagem” (foto: Eugeni Pulido).

O papel eletrônico tem basicamente dois componentes: a tinta e o suporte flexível. A este associa-se o sistema eletrônico, capaz de imprimir e apagar texto e imagens. Cada um desses componentes é parte de uma grande área de pesquisa, agraciada com alguns prêmios Nobel pelo caminho. O principal modo de preparação da tinta eletrônica, por exemplo, utiliza a eletroforese, fenômeno cuja descoberta em 1937 valeu o Nobel de Química de 1948 ao sueco Arne Tiselius (1902-1971).

Antes de abordarmos os métodos atuais, vale a pena recordar a primeira ideia de uma tinta eletrônica. Ela foi inventada por Nicholas Sheridon em 1974, quando era pesquisador do Centro de Pesquisa da Xerox, em Palo Alto, naquela região da Califórnia conhecida como Vale do Silício. O processo foi batizado de Gyricon, palavra grega que significa “rotação de imagem”.

Essencialmente o processo funciona assim: esferas de plástico microscópicas são fabricadas com um hemisfério pintado de branco e outro de preto. Cada um deles tem uma carga elétrica diferente – digamos que o hemisfério branco seja negativo, enquanto o preto é positivo. Milhares dessas esferas são dispersas em um líquido entre duas camadas de material flexível. Uma delas é necessariamente transparente.

Se uma voltagem positiva for aplicada na camada transparente, as esferas giram e exibem o hemisfério negativo (branco). Letras e imagens são então produzidas com uma distribuição adequada de voltagens na camada transparente. O processo foi abandonado pela Xerox em dezembro de 2005, quando seus competidores avançavam na técnica de eletroforese.

No processo de eletroforese, por sua vez, existem duas alternativas. Na primeira, algumas esferas são brancas, enquanto outras são pretas. Esferas de uma cor são carregadas positivamente, e as outras, negativamente. Na segunda alternativa, apenas um tipo de esfera é disperso em um líquido colorido e que apresente um bom contraste com a cor das esferas – esferas brancas em um líquido azul, por exemplo. Em ambos os casos, a formação da imagem é similar ao processo do Gyricon: a distribuição de voltagens é que define a imagem.

No caso de esferas brancas carregadas negativamente, uma voltagem positiva na superfície visível apresenta uma imagem branca, pois as esferas são atraídas pela voltagem. No caso de uma voltagem negativa, elas são repelidas, e a imagem fica azul. Esse mecanismo é aplicado em cada ponto da imagem. Ou seja, cada pixel tem um conjunto de esferas e uma conexão ao sistema eletrônico. Vejamos um dos processos utilizados para formar cada pixel.

A tinta eletrônica do MIT

A tinta eletrônica desenvolvida no MIT se baseia no princípio da eletroforese. O dispositivo conta com milhares de micropartículas esféricas de cor preta e branca, cada tipo carregada com um sinal diferente. Em função da carga elétrica aplicada, muda a disposição das microesferas na superfície do suporte flexível. O rearranjo dessas partículas permite formar diferentes textos e imagens (arte: Gerald Senarclens de Grancy).

Esse método foi inventado por Joseph Jacobson e colaboradores, no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT, na sigla em inglês), entre 1997 e 1998. Milhares de micropartículas com diâmetro em torno de 5 micrômetros, metade brancas e metade pretas, são encapsuladas numa esfera de material transparente, com diâmetro entre 30 e 300 micrômetros.

As micropartículas brancas podem ser obtidas com dióxido de titânio, e as pretas, com pigmentos inorgânicos. Cada espécie de micropartícula é carregada com um sinal diferente. Existem procedimentos químicos para evitar que haja atração entre as cargas de sinais contrários. Outra alternativa é usar um único tipo de partícula em um fluido dielétrico cuja cor contraste com a das micropartículas.

Milhares de cápsulas formando um líquido como uma tinta comum são fixadas em uma folha de polímero semicondutor. Uma vez fixada, a tinta é manipulada pelo sistema eletrônico para a formação de imagens.

Antes de descrever o sistema eletrônico, convém adiantar que este é o principal responsável pela esperada popularização do papel eletrônico. A base polimérica permite a flexibilidade do papel, e o baixo custo de produção dos circuitos integrados redundará em produtos baratos.

O sistema eletrônico
Para a fabricação de circuitos integrados baseados no silício são necessários ambientes de alto vácuo, sofisticados e caros. No caso de polímeros semicondutores, filmes finos podem ser formados a partir de soluções líquidas, por intermédio de um processo de auto-organização em pressão atmosférica – uma espécie de impressão de jato de tinta.

Embora simples, o processo não deixa de ter suas exigências em termos de precisão. Um circuito integrado é formado por milhares de transistores. Em cada um deles, existem partes ocupadas pelo elemento ativo – no caso, o polímero – e partes ocupadas por contatos elétricos passivos. Em transistores de polímeros, a distância entre alguns contatos é inferior a 5 micrômetros.

Não é fácil controlar gotas d’água que se esparramam sobre uma superfície. De forma análoga, o controle da forma como se esparramam as gotas da solução polimérica usada no papel eletrônico foi um dos desafios no seu desenvolvimento (foto: Dan Shirley).

A deposição da solução polimérica no substrato do circuito deve ter resolução suficiente para não cobrir esses contatos. Ocorre que os processos mais simples de deposição não conseguem resolução inferior a 20 micrômetros. Isso é consequência da dificuldade de se controlar o fluxo e a tendência das gotas de polímero se esparramarem pela superfície do substrato.

Uma solução interessante para restringir o espalhamento das gotas de polímero foi inventada por Henning Sirringhaus e colaboradores no Laboratório Cavendish, da Universidade de Cambridge (Reino Unido), há menos de cinco anos. Eles simplesmente colocaram um produto hidrofóbico nas regiões proibidas. Como as gotas de polímero contêm água, elas não conseguem penetrar naquelas regiões hidrofóbicas.

Em escala de laboratório o avanço é extraordinário. A empresa americana E Ink Corporation tem contribuído significativamente para isso. Já em 2003 eles apresentaram, em associação com a Philips, um pequeno painel (12,7 centímetros na diagonal), utilizando a tinta eletrônica do MIT. Dois anos depois eles apresentaram o primeiro protótipo no tamanho de uma folha A4.

Esse protótipo usa 100 vezes menos energia do que um monitor de cristal líquido convencional. A razão – válida para todos os dispositivos desse tipo – é que, uma vez formada a imagem, ela permanece na tela mesmo na ausência do campo elétrico que a formou. Por outro lado, como sua visualização se dá por reflexão da luz incidente no painel, não há necessidade de bateria para manter a exibição da imagem. Esta será utilizada apenas para acionar o sistema eletrônico nos momentos em que se desejar formar ou apagar imagens.

Uma perspectiva mais ampla
Quando se fala em papel eletrônico, geralmente vem à mente a imagem do início desta coluna. Nesse sentido, ele seria uma evolução dos atuais livros eletrônicos. No entanto, a indústria tem uma perspectiva mais ampla quando se refere a esse produto. Não devemos esquecer que papel eletrônico é qualquer coisa que seja flexível, possa exibir imagens por reflexão de luz, apresente baixo consumo de energia e, se possível, tenha grande capacidade de armazenamento.

Assim, o leque de assemelhados se abre extraordinariamente. Teremos, por exemplo, papel eletrônico em etiquetas de produtos nas prateleiras de lojas e supermercados. Os dados ali contidos poderão ser alterados por um sistema de comunicação sem fio. Teremos papel eletrônico em grandes painéis, a um custo bem inferior aos atuais.

No que se refere ao sonho de consumo de muitos leitores, voltemos à cena inicial: um canudo com 1 centímetro de diâmetro e 15 a 20 centímetros de comprimento. Lá dentro, uma folha retrátil, com milhares de livros gravados e conexão sem fio para buscar conteúdo em repositórios na internet e um sistema que permita uso de mensagens eletrônicas. Tudo isso por não mais do que 250 reais, e em futuro mais próximo do que muitos imaginam! 


Carlos Alberto dos Santos
Colunista da CH On-line
Professor aposentado pelo Instituto de Física
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
27/03/2009