Em um debate eleitoral tão pouco mobilizador como o que tivemos no primeiro turno das eleições presidenciais, não deveria causar surpresa a ausência de temas importantes da política nacional. Mas um, em especial, chamou a atenção, talvez por ser um tema quase clássico em todas as eleições brasileiras recentes: a questão fundiária.
Talvez pela primeira vez em alguns anos, agora não presenciamos ânimos inflamados em discussões sobre a pertinência ou não da reforma agrária brasileira, ou sobre a legitimidade e legalidade (ou, dependendo da posição política, ilegitimidade e ilegalidade) de ações de grupos sociais como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
Essa constatação me veio à cabeça ao abrir o livro Direito à terra no Brasil: a gestação do conflito, de Márcia Maria Menendes Motta (São Paulo, Alameda, 2009), cujo prefácio, de autoria de Laura de Mello e Souza, começa assim: “Quase não se passa um dia sem que o noticiário brasileiro registre problemas envolvendo o uso da terra entre nós” (p. 9).
De fato, ela tem – ou tinha – razão. O que aconteceu com a agenda da luta pela terra no Brasil? Mudou o país, mudaram os candidatos ou mudou a mídia?
Difícil dizer. O que sabemos é que a recente ausência de discussão não significa que a questão tenha diminuído de importância no cenário brasileiro. Ao contrário: isso é justamente o que mostra o novo livro de Márcia Motta, professora do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense e, há muito, especialista na história dos conflitos fundiários no Brasil.
Cartas de sesmaria
Márcia orienta sua pesquisa a partir de uma constatação intrigante: a maioria dos litígios de terras no Brasil usa cartas de sesmaria para comprovar a legitimidade da propriedade de uma dada área. Isso valeu inclusive para um processo bem recente, de 2005, no qual um fazendeiro, ocupando ilegalmente uma área equivalente a 1% do território nacional, baseou sua argumentação na existência de duas cartas de sesmaria, que teriam sido doadas pela Coroa aos portugueses Manoel Joaquim Pereira e Manoel Fernandes de Souza.
A questão é que, originalmente, as sesmarias foram criadas para fazer com que mais terras fossem cultivadas. No quadro da crise agrícola do século 14, em Portugal, a saída foi a Coroa doar terras para indivíduos, que, ao receberem-nas, supostamente estavam comprometidos com seu plantio. Como o significado das cartas de sesmaria mudou tanto? É esta a pergunta que a pesquisadora procura responder.
Para isso, ela volta a um momento crucial da nossa história: a passagem do século 18 para o 19, mais exatamente o período que vai de 1795, quando a Coroa portuguesa passou a acompanhar mais de perto o processo de concessão de terras no Brasil, a 1824, quando a primeira Constituição do Brasil independente consagrou o princípio quase absoluto da propriedade da terra.
Afinal, distribuídas em larga escala nos séculos 16 e 17, em fins do 18 as cartas de sesmaria já eram documentos antigos, sujeitos a várias interpretações entre proprietários de terra – e por isso mesmo objeto de disputas.
A Coroa, naquela época, consciente dos problemas da apropriação de terras em uma região de fronteira aberta, como era a colônia brasileira, buscava justamente regular a maneira como eram concedidas terras no Brasil.
Afinal, os conflitos fundiários entre grandes e pequenos proprietários multiplicavam-se, ao mesmo tempo em que se consolidava a crença de que a sesmaria constituía um título legítimo e, por extensão, incontestável.
Não era.
Devolução de terras
Ainda em 1821, quando os deputados brasileiros ainda pertenciam às Cortes portuguesas, ninguém menos que José Bonifácio propôs que as terras doadas pelo Estado a indivíduos pelo sistema de sesmarias deveriam ser devolvidas, caso não fossem cultivadas.
Outros chegaram a fazer coro a sua proposta, como o deputado Domingos da Conceição, do Piauí, ao propor que “todo o cidadão que não tiver enchido o fim, pelo qual lhe foi concedida a sesmaria, seja considerado por este mesmo facto devoluta”.
A questão foi objeto de intensas discussões nos anos 1820, principalmente no âmbito da constituinte de 1823. Questionava-se o regime de doação de terras, o limite da propriedade dos latifundiários, bem como a legitimidade do Estado em querê-las de volta, caso as terras não fossem cultivadas.
Mas nenhuma discussão chegou a avançar. Com a dissolução da Assembleia Constituinte por D. Pedro I, a Constituição de 1824 entrou em vigor assentada no princípio básico da “liberdade, da segurança individual e da propriedade”. A consagração da propriedade significava, na prática, o fim do sistema de sesmarias e da obrigatoriedade do cultivo de terras.
Concentração de terras
A conclusão a que Márcia Motta chega é que o significado das cartas de sesmaria mudou – e para pior. De doação que fomentava o cultivo de terras, passou a argumento de autoridade para legitimar a posse de terras, muitas vezes de grileiros.
Impossível deixar de notar que a mudança no sentido original da lei também permitiu a concentração de terras, base a partir da qual seriam construídas a riqueza e a pobreza do Brasil. E não adianta dizer que essa mudança é fruto da colonização portuguesa, ou da dominação dos ingleses: ela foi uma escolha feita aqui mesmo, no Brasil.
Bem disse Francisco Mauricio de Souza Coutinho, governador do Pará no fim do século 18, ao afirmar que “a discussão sobre a litigiosidade dos títulos (…) não se deslindará em séculos”. Trabalhos como o de Márcia Motta são leitura indispensável para quem quer deslindar a espinhosa discussão sobre a propriedade fundiária no Brasil.
Keila Grinberg
Departamento de História
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro