A teoria da mente em questão

Ao se confrontar com uma pessoa chorando, você sabe pela expressão da face, pela vocalização do choro e pela gesticulação corporal que ela está triste, para dizer o mínimo. Se sua empatia com a pessoa for grande, você vivenciará parte da mesma tristeza, e poderá até chorar também.

Todos nós já vivenciamos situações como essa, sem avaliar muito bem o quanto essa capacidade de vivenciarmos os sentimentos dos outros e tentar adivinhar o pensamento de terceiros é importante para a vida cotidiana e uma característica essencial dos seres humanos. Dos seres humanos sim, já que não sabemos muito bem se os outros primatas a possuem, como questionou o primatologista americano David Premack ao inaugurar os estudos empíricos sobre o assunto, em artigo famoso de 1978.

Os psicólogos e neurocientistas costumam chamá-la “teoria da mente”, porque essa capacidade nos possibilita inferir o que o outro sente e pensa, ou seja, criar uma teoria (mais corretamente, uma hipótese) sobre o que passa pela mente dos outros. Isso permite que ajustemos nossas relações sociais, nossas interações com os outros, e escolhamos os comportamentos mais adequados a cada situação. Tentamos “adivinhar” qual é a do nosso interlocutor e agir de acordo com essa hipótese – às vezes dá certo, às vezes não…

No estudo holandês, os atores reproduziam graus diferentes de emoções negativas ou positivas. Os voluntários assistiam aos clipes durante o registro da neuroimagem funcional. Adaptado de Jabbi e colaboradores (2007).

A teoria da mente é utilizada em todas as situações, e os neurocientistas procuram incansavelmente as áreas cerebrais e os mecanismos neurais subjacentes a ela. Um exemplo interessante acaba de ser publicado na revista especializada NeuroImage : a percepção do nojo sentido pelos outros é processada nas mesmas regiões cerebrais que utilizamos quando nós mesmos temos nojo de algo. É o que concluiu uma equipe holandesa liderada pelo neurocientista Christian Keysers.

Os pesquisadores utilizaram atores para gerar pequenos clipes nos quais eles bebiam algo e depois criavam expressões neutras, de prazer ou de nojo. Os participantes do estudo, voluntários sem doenças neurológicas ou psiquiátricas, passavam por um estudo de ressonância magnética funcional logo após a visualização desses clipes, o que possibilitava identificar as regiões ativas durante a percepção do estado emocional dos atores e compará-las com o mapa da ativação cerebral verificada quando o sentimento de nojo ou prazer era do próprio sujeito, e não dos atores.

Reviver estados mentais
O estudo comprovou que nos dois casos a mesma região era ativada – o chamado córtex da ínsula – o que foi interpretado como evidência de que a nossa interpretação dos estados mentais de terceiros envolve uma “revivência” dos nossos próprios estados mentais. O cérebro ativa os mesmos circuitos, e isso nos possibilita criar uma hipótese sobre a mente do outro, baseada na nossa própria vivência mental.

Imagem de ressonância magnética funcional do cérebro dos voluntários que participaram do estudo holandês. Os focos coloridos representam as regiões do córtex da ínsula ativadas pelos clipes criados pelos atores. Pode-se observar que a ativação é maior para a percepção de emoções negativas (nojo) do que positivas, mas não ocorre quando os atores mostram neutralidade emocional. Adaptado de Jabbi e colaboradores (2007). 

Isso faz sentido para as pessoas normais e, além disso, casa perfeitamente com as observações feitas em portadores de certas doenças neurológicas e psiquiátricas, o que inclusive mostra que não há muito sentido em separá-las – ambas derivam de transtornos das funções cerebrais.

Pacientes com a doença de Huntington apresentam degeneração de regiões cerebrais envolvidas com o controle da motricidade e, por isso, apresentam fortes movimentos anormais involuntários que praticamente inviabilizam sua vida social. A doença é progressiva e pode levar à morte. O que poucos sabem é que os portadores dessa doença apresentam também distúrbios da expressão e da percepção de certas emoções, entre elas exatamente o nojo. E são justamente os circuitos que passam pelo córtex da ínsula os envolvidos nas alterações degenerativas que esses pacientes apresentam.

Distúrbios ligados à percepção de nojo existem também em portadores de TOC – o transtorno obsessivo-compulsivo. A mesma região da ínsula é ativada – mais do que em pessoas normais – em situações que provocariam apenas nojo moderado, e na percepção dessa emoção expressa por terceiros. Não é por outra razão que o comportamento obsessivo de lavar as mãos é tão freqüente nesses indivíduos.

Os estudos dos neurocientistas envolvendo essa emoção bizarra – o nojo – têm mostrado forte sugestão de que nosso cérebro de fato utiliza o padrão de ativação de cada momento para estabelecer hipóteses sobre a mente dos outros. Se as regiões ativadas ao vermos uma pessoa chorando são as mesmas ativadas quando nós próprios choramos, é muito provável que essa pessoa esteja triste como ficamos nós quando choramos. Mas o choro é explícito, fácil de interpretar. Difícil é identificar a sutileza dos sentimentos delicados e menos extremos, como o riso aberto do prazer e o choro desabrido da angústia e da tristeza.

SUGESTÕES PARA LEITURA
D.G. Premack e G. Woodruff (1978) Does the chimpanzee have a theory of mind? Behavioral and Brain Sciences , vol. 1, pp. 515-526.
D.J. Stein e colaboradores (2006) Neurocircuitry of disgust and anxiety in obsessive-compulsive disorder: A positron-emission tomographic study. Metabolic Brain Diseases , vol. 21, pp. 267-277.
M. Jabbi, M. Swart e C. Keysers (2007) Empathy for positive and negative emotions in the gustatory cortex. NeuroImage , vol. 34, pp. 1744-1753.
C.J. Hayes e colaboradores (2007) Disgust and Huntington’s disease. Neuropsychologia , vol. 45, pp. 1135-1141.

Roberto Lent
Professor de Neurociência
Instituto de Ciências Biomédicas
Universidade Federal do Rio de Janeiro
31/05/2007