Aborto no Brasil: mortes em silêncio

Nas últimas semanas, o país tem debatido de forma acalorada sobre a descriminalização do aborto e, consequentemente, os direitos da gestante e de seu concepto. Apesar de tal discussão ter surgido de forma oportunista e visar apenas angariar votos, é extremamente apropriado e atual debater sobre os diversos aspectos do aborto no Brasil.

O aborto tem se convertido nos últimos anos em um grande problema para a saúde pública mundial, pois a interrupção da gravidez, por meios legais ou ilegais, tem se tornado cada vez mais frequente. Essa situação acarreta um elevado número de mortes e compromete a saúde de milhares de mulheres.

Estimativas de 2005 da Organização Mundial da Saúde (OMS) indicam que ocorrem a cada ano no planeta cerca de 87 milhões de casos de gravidez indesejada. Desses resultam entre 46 milhões e 55 milhões de abortos.

Diariamente ocorre no mundo um aborto a cada 24 segundos

Diariamente, são realizadas cerca de 126 mil interrupções voluntárias da gravidez, ou seja, ocorre um aborto a cada 24 segundos. Comparativamente, é como se 1/4 da população brasileira ou todos os habitantes da Itália, ou da Espanha ou da Argentina fossem exterminados em um único ano. A grande maioria desses abortos (78%) ocorre em países em desenvolvimento.

A cada ano, aproximadamente 18 milhões de mulheres abortam de forma clandestina. Anualmente, cerca de 13% da mortalidade materna no planeta são atribuídos a abortos malsucedidos.

A situação brasileira

Gestante
Segundo estimativas de 2001, 10% das gestações no Brasil terminam em aborto (foto: Hilde Vanstraelen / sxc.hu).

No Brasil, estimativas realizadas em 2005 com base em internações hospitalares decorrentes de complicações provenientes de abortos registradas pelo Sistema Único de Saúde (SUS) indicam que ocorrem cerca de 1,5 milhões de abortos a cada ano. É como se fosse eliminada totalmente a população de Porto Alegre, ou de Recife, ou de Campinas e Niterói juntas.

Cálculos do Ministério da Saúde, por sua vez, revelam que 3,7 milhões de mulheres entre 15 e 49 anos induziram aborto (7,2% do total de mulheres em idade reprodutiva). Estimativas de 2001 indicam que 10% das gestações acabam em aborto, que se constitui na quarta causa de óbito materno no país, vitimando 9,4 de cada 100 mil gestantes.

Estudiosos do tema acreditam que o número de interrupções não naturais da gestação é subestimado, pois a maioria das mulheres que fazem abortos recorre a clínicas clandestinas, somente procurando os serviços de saúde pública se algo der errado.

A realização de curetagens devido a abortos é o segundo procedimento obstétrico mais praticado no país

O impacto dos abortos ilegais é enorme e pode ser estimado por meio dos casos em que as gestantes têm complicações ─ que não conseguem solucionar sozinhas ou nas clínicas clandestinas ─ e acabam por ter que recorrer aos serviços de saúde. A realização de curetagens devido a abortos tem se tornado cada vez mais comum, sendo, de acordo com o Ministério da Saúde, o segundo procedimento obstétrico mais praticado no país, após os partos normais.

Apesar da enorme frequência de abortos no país, o Código Penal Brasileiro prevê uma pena de 1 a 10 anos de detenção, de acordo com a situação, como punição para o aborto. Além disso, afirma que a interrupção não natural da gravidez pode ocorrer apenas em duas situações: quando houver risco de morte para a gestante ou a gravidez for resultante de estupro. Contudo, mulheres presas por fazer abortos são uma raridade.

As razões do aborto

Mas o que faz uma mulher optar por interromper uma gravidez mesmo correndo riscos enormes para a sua saúde e até para a sua liberdade? Obviamente, nenhuma mulher em seu juízo perfeito escolheria realizar um aborto. Contudo, há uma série de outros fatores envolvidos.

Um estudo recentemente publicado traz uma série de novas pistas para se esclarecer os motivos e o perfil das mulheres que realizam abortos no Brasil. Essa pesquisa, coordenada por Débora Diniz, antropóloga da Universidade de Brasília (UnB), e por Marilena Corrêa, médica sanitarista da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), avaliou mais de 2 mil estudos sobre o aborto no país. Os resultados contrariam o senso comum, segundo o qual esperaríamos uma maior taxa de abortos entre adolescentes e mulheres com pouco estudo, desempregadas, solteiras e não católicas.

Embrião de 8 semanas
Embrião com aproximadamente oito semanas de idade gestacional conservado em álcool após aborto espontâneo (foto: Jacopo Werther/ CC BY 2.0).

Segundo Diniz e Corrêa, a maioria das mulheres que abortam tem entre 20 e 29 anos e possui uma união estável (cerca de 70%). Essas mulheres têm até oito anos de estudo e a maioria trabalha e é católica (entre 44,9% e 91,6%, dependendo do estudo analisado).

A maior parte delas possui, pelo menos, um filho (entre 70,8% e 90,5%) e é usuária de métodos contraceptivos (principalmente a pílula anticoncepcional). Segundo vários estudos, a realização de abortos seria uma solução utilizada por muitas mulheres quando os métodos contraceptivos falham.

A maioria das mulheres que abortam no Brasil possui uma união estável, trabalha e é católica

As análises também indicam que entre 50,4% e 84,6% das mulheres que interrompem a gravidez utilizam o misoprostol (conhecido popularmente como Cytotec), um medicamento vendido ilegalmente em todo o país.

A perda do apoio da família e do pai da criança e a carência de iniciativas educacionais e assistenciais do poder público para auxiliar gestantes, aliadas a problemas financeiros associados com a manutenção de uma criança indesejada e com a exiguidade de perspectivas futuras são fatores que contribuem para a decisão a favor do aborto. Contudo, essa decisão não é simples de ser tomada e, muitas vezes, representa prejuízos psicológicos enormes e duradouros para aquelas que optam por ela.

A maioria da população brasileira parece não estar ciente dos enormes problemas causados pelos abortos clandestinos em nosso país. Uma pesquisa realizada em março de 2007 pelo Instituto de Pesquisas Datafolha (do jornal Folha de S. Paulo) revelou que a maioria dos entrevistados (65%) é contrária a mudanças na atual legislação sobre o aborto e que cerca de 16% são favoráveis a uma expansão na legislação. Apenas 10% dos entrevistados afirmam que o aborto deveria ser descriminalizado, algo que já ocorre em 97 países, que reúnem cerca de 66% da população mundial.

Manifestação pela legalização do aborto
Manifestação a favor da legalização do aborto realizada em São Paulo no ano passado no Dia Internacional da Mulher (foto: Christiensen/ Wikimedia Commons).

O debate sobre o início da vida

O debate sobre a ampliação do direito ou descriminalização do aborto é complexo. Posições religiosas contrárias são fortes. Já a Constituição Brasileira afirma que o país é laico e é responsável pelo bem-estar dos indivíduos. Mas a partir de que momento o concepto pode ser considerado um indivíduo?

A partir de que momento o concepto pode ser considerado um indivíduo?

O desenvolvimento embrionário depende de uma série de transformações orquestradas ao longo de 38 semanas de desenvolvimento. Para alguns cientistas, a vida começaria durante a fecundação (1º dia de gestação), quando ocorre a união dos gametas feminino e masculino e a formação da primeira célula (zigoto), que já possui todos os genes do futuro indivíduo. O zigoto, contudo, é uma célula indiferenciada, e sua diferenciação se iniciará somente durante a gastrulação (em torno de 13 dias após a fecundação).

Como a ausência de atividade cerebral é o evento associado com a morte humana, outros pesquisadores consideram que o início da vida humana ocorre apenas com o surgimento da atividade neuronal, na 4ª semana após a fecundação.

Um outro ponto de vista associa o início da vida com a capacidade do concepto de sobreviver de forma independente. Segundo essa hipótese, o feto somente poderia sobreviver fora do organismo da mãe, desde que tenha cuidados médicos intensivos, a partir de 25 ou 27 semanas ou, alternativamente, após o parto, quando, segundo as leis brasileiras, o indivíduo adquire direitos básicos como o registro civil.

Nascimento de bebê
Segundo as leis brasileiras, o indivíduo adquire direitos básicos após o parto (foto: Gengiskanhg/ Wikimedia Commons – CC BY 3.0).

Na verdade, a definição da origem da vida é uma discussão inócua e que admite uma série de pontos de vista conflitantes. Para alguns, desde a fecundação o concepto já possui a potencialidade para gerar uma nova vida, que será engendrada após uma série de eventos sucessivos e programados. Para outros, contudo, o embrião, por si só, representa apenas um amontoado de células que, se deixadas sem o apoio da mãe, não gerarão nada.

Independentemente da posição que seja adotada, a favor ou não de modificações na legislação sobre o aborto, algo é claro: há uma necessidade de que o tema seja mais discutido e que a população seja mais informada sobre o massacre a que são submetidas milhões de brasileiras que optam em desespero por interromper uma gravidez.

Jerry Carvalho Borges
Departamento de Medicina Veterinária
Universidade Federal de Lavras

 

Sugestões para leitura

Guedes,A.C. 2000. Abortion in Brazil: Legislation, reality and options, Reproductive Health Matters, 8: 16, 66-76.

Nations,M.K., Misago,C., Fonseca,W., Correia,L.L., Campbell,O.M.R. 1997. Women’s hidden transcripts about abortion in Brazil, Social Science & Medicine, 44: 12, 1833-1845.

Novaes,H.M.D. 2000. Social impacts of technological diffusion: prenatal diagnosis and induced abortion in Brazil, Social Science & Medicine, 50: 1, 41-51.

Costa,S.H..1998. Commercial availability of misoprostol and induced abortion in Brazil, International Journal of Gynecology & Obstetrics, 63-1:1,S131-S139.

Faundes,A.2010. Unsafe abortion – the current global scenario, Best Practice & Research Clinical Obstetrics & Gynaecology, 24:4,467-477.

Coelho,H.L.L,  Teixeira,A.C.,  Santos,A.P.,  Barros Forte,E.,  Morais,S.M.,  LaVecchia,C., Tognoni,G.,  Herxheimer, A.1993. Misoprostol and illegal abortion in Fortaleza, Brazil, The Lancet, 341: 8855, 1261-1263.

Rao,K.A., Faundes,A. 2006. Access to safe abortion within the limits of the law, Best Practice & Research Clinical Obstetrics & Gynaecology, 20: 3, 421-432.