Água: movendo moinhos, turbinas e outras engrenagens

A crise hídrica de nosso país, majoritariamente dependente de hidroeletricidade para geração de energia, é rica em desdobramentos e instrutivas descobertas.

Começamos descobrindo que a morte, um dos conceitos que pareciam mais bem estabelecidos no sentido comum, é na verdade algo relativo. O volume morto das represas, por exemplo, aquele que fica abaixo das bocas de captação, já foi sugado de canudinho e descobrimos agora que há o segundo volume morto. Nem os filmes de zumbi pensaram nisso: a morte com fundo falso.

Descobrimos ainda o que sempre foi fato, mas dependia de chuvas abundantes e regulares para não ser problema: por exemplo, a singela constatação de que mesmo que pudéssemos não tirar um litro de água de nossas represas por certo tempo, elas continuariam sendo sangradas 24 horas por dia para acionar turbinas e gerar eletricidade.

Revelam-se ainda dados chocantes, como a perda de 11 m3/s de água do rio Guandu, no Rio de Janeiro, para manter, artificial e permanentemente, um fluxo extra e evitar a salinização da água captada por quatro grandes indústrias da região. Pedra cantada e não ouvida, a subida do nível do mar estava prevista, está ocorrendo e vai piorar, e esse é um bom exemplo de adaptação às mudanças climáticas que não ocorreu a tempo e agora vai custar mais caro. Uma nova captação terá de ser construída vários quilômetros rio acima e vai ser interessante acompanhar quem vai pagar a conta.

Há perda de 11 m3/s de água do rio Guandu, no Rio de Janeiro, para manter, artificial e permanentemente, um fluxo extra e evitar a salinização da água captada por quatro grandes indústrias da região

Vêm ainda à tona ‘segredos de polichinelo’, que técnicos e cientistas já conheciam há décadas, como o fato de que a captação de água do mesmo rio Guandu para tratamento e distribuição é realizada a ridículos 300 m da confluência deste com o rio Queimados, que traz pesadíssima carga de esgoto doméstico e industrial. O custo extra de tratamento dessa água ao longo de décadas já é o equivalente ao de várias obras de transposição da captação da água do Guandu para montante de seu fatal encontro com o Queimados. A obra redentora, sempre prometida e planejada, nunca saiu do papel. O que é curioso, pois a nossa rotineira convivência com esqueletos de concreto nos ensinou que eles são muitas vezes os únicos testemunhos de programas e projetos que consumiram suas verbas sem alcançar os objetivos que as justificavam.

E descobrimos ainda o que já estava no site da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) há décadas, isto é, que a agricultura e pecuária são responsáveis por cerca de 70% de todo o consumo de água e também por porcentagem semelhante de seu desperdício.

Onde está o plano B?

Não acreditamos na conexão entre clima, emissões de carbono e desmatamento, e agora a chuva nos falta e passam a fazer falta também os planos B nos quais não investimos. Demos tímido espaço ao nuclear, demos uma chance ao solar e ao eólico, pequena demais e tarde demais.

Mas atenção, seus problemas estão resolvidos: o governo anunciou que estuda uma linha de crédito para geração solar. Só falta concluir os estudos e lembrar também de dar subsídios, isenções e outros incentivos ao ciclo do eólico, às ciclovias, aos veículos elétricos, à reciclagem etc, etc e mais etc. Hoje, a maioria dos estados taxa a geração solar, enquanto alguns como Minas Gerais dão o exemplo e a isentam. Calma, não estamos exigindo igualdade de tratamento com os pesadíssimos subsídios ao petróleo. Sejamos realistas, afinal os gestores atuais são os mesmos que reduziram as tarifas elétricas em plena escassez e empurraram o racionamento de água para frente.

Enquanto isso, a geração solar explode nos Estados Unidos, China, Índia e, pasmem, Alemanha e outros países europeus com muito menos insolação que o Brasil. Temos tradição de dar pouco valor ao que abunda (sem trocadilho, mesmo nestes tempos pós-Carnaval), como água, solo, madeira, gente e sol. Mas, de todas essas commodities, o sol é a que tem mais chances de durar.

Usina de Energia Solar de Tauá
Usina de Energia Solar de Tauá, no Ceará. O Brasil, um país com elevada incidência de sol o ano todo, investiu pouco e tarde demais na geração de energia solar. (foto: Otávio Nogueira/ Flickr – CC BY 2.0)

Todo cuidado é pouco, no entanto, porque os nerds da geoengenharia estão atacando novamente. Andaram propondo mais um delírio de vilão de desenho animado: jogar na estratosfera, com aviões (mais emissões), milhares de toneladas de dióxido de enxofre, que, se tudo der certo, sofreriam varias reações na atmosfera até virar um escudo de aerossol que refletiria de volta ao espaço cerca de 3% dos raios solares. Cuidado com essa turma, eles acham que é seguro guardar no solo gases como o CO2 capturado de termoelétricas, quando não conseguem lidar de forma segura nem com líquidos como o petróleo que as alimenta.

Dessa vez, a Associação Nacional de Ciências dos Estados Unidos (NAS) reagiu e divulgou dois estudos que questionam a maturidade das propostas de geoengenharia e até mesmo o status de engenharia das mesmas, credencial que suporia um grau de controle que estas não têm.

Crítica à gestão hídrica no Brasil

No Brasil, a Academia Brasileira de Ciências divulgou em 12 de fevereiro a ‘Carta de São Paulo’, manifesto em que 15 cientistas especializados na área criticam a gestão dos recursos hídricos no país e apontam que a escassez já está impactando negativamente a saúde pública, o rendimento agrícola e a produção de energia. Uma das críticas do documento é o abandono de equipamentos antigos, mas funcionais, e a falta de manutenção das vetustas redes de abastecimento.

As grandes obras parecem de fato ser mais atraentes que as pequenas. O governo do estado do Rio de Janeiro, por exemplo, cogita a construção de uma usina de dessalinização de água do mar em Itaguaí que abasteceria um milhão de pessoas. As negociações para uma parceria público-privada com sócios espanhóis experientes na área já estariam adiantadas.

Espero que o projeto da usina tenha previsão de geração solar e/ou eólica, afinal, dessalinizar água requer muita energia e esta está tão escassa quanto a água.

Pouco se lembra que investimentos em eficiência poderiam por si só afastar as nuvens negras da escassez de água e energia, da mesma forma que a maior eficiência na agricultura poderia zerar o desmatamento

Apesar de um editorial aqui e um estudo técnico ali, pouco se lembra que investimentos em eficiência poderiam por si só afastar as nuvens negras da escassez de água e energia, da mesma forma que a maior eficiência na agricultura poderia zerar o desmatamento.

Mas preferimos abraçar o petróleo e seus polpudos royalties, dando a esse setor todas as regalias e prioridades. Tal concentração de poder e riqueza raramente dá bons resultados, como ilustrado à exaustão pelo noticiário recente sobre a corrupção bilionária no setor no país. E, de qualquer forma, qual país produtor de petróleo é um bom exemplo de governança? Venezuela, Nigéria, Guiné Equatorial, Líbia, Arábia Saudita, Rússia?

Ah, esqueci a Noruega. Lá, prudentemente, os royalties são pagos diretamente aos cidadãos, que podem usá-los como quiserem, até para investir em energia eólica e solar doméstica. Eles sabem que, ao contrário do sol e dos ventos, petróleo e royalties acabarão em breve.

Mas há males que vêm para bem. Em tempos de escassez hídrica, o lobby do gás de xisto anda mantendo estrondoso silêncio. De fato, a extração do gás terrestre ou não convencional (ele é hype!) exige injeção maciça de água doce. De onde, cara pálida? Vão comprar carro-pipa ou tirá-la do aquífero?

Jean Remy Davée Guimarães
Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho
Universidade Federal do Rio de Janeiro